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José Carlos Fernandes

Uma travessa chamada “Esperança”

 | Foto: André Rodrigues – Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: André Rodrigues – Arte: Felipe Lima)

Inútil procurar a Travessa Esperança no mapa de Curitiba. A via não existe, ainda que tenha sido aberta há mais de 30 anos e seja o endereço de sete famílias – gente como Araci, Valdir, José, Nilânia, Amarildo e Maurílio... Aqui vão duas dicas para os carteiros e entregadores das Casas Bahia: a pequenina "Esperança" fica no bairro Lindoia e, sem pedir licença, liga duas ruas de nomes bem sugestivos. Não tem como esquecer.

De um lado está a Avenida Henry Ford – homenagem ao capitalista norte-americano que em 1903 criou a Ford Motor Company. A ele se refere a expressão "fordismo", produção maciça de automóveis, lição seguida à risca nessas plagas. De outro lado, a Rua Oscar Wilde, em referência ao dramaturgo e polemista irlandês que morreu três anos antes de os Fords T ganharem as cidades. Seu legado para a humanidade não foram roncos de motores, mas frases barulhentas, declamadas com paixão nos últimos 113 anos.

Ao ligar Ford a Wilde, é como se a Travessa Esperança fizesse um atalho entre Eike Batista e Paulo Leminski, entre a calçada do Batel e o quartier St. Germain-des-prés. Chega a ser divertido. Mas não para a turma dali, louca para ter um CEP. Bati palmas em várias portas. Poucos acreditam que a regularização fundiária saia da promessa. Fazem as contas no dedo, somando os anos de chá de cadeira e nada.

A Cohab diz que está por um triz, calma gente. Por causa desse vai não vai, há mais ou menos uma década o lavador de carros Amarildo Lopes pegou uma placa velha caída de um poste, arrumou tinta e pintou ali o nome "que existe só de boca": "Travessa Esperança". "Já que ninguém a batizava, batizei eu", brinca o autor da peraltice. A reprodução é quase perfeita e mereceria um lugar no museu municipal.

A turma tem um certo medinho de que a prefeitura, quando chegar com a papelada carimbada, dê outro título ao lugar. Vai lá que decidam laurear um político bem bacana. Gostariam que permanecesse "Esperança", apesar das contínuas confusões com uma quase homônima, no Alto Boqueirão – a Rua Boa Esperança. Muita entrega já foi parar no bairro vizinho, mas nada que tire da travessa clandestina e valente o direito de existir. Aqueles 25 metros têm seus brios.

Explico. A ruela surgiu na década de 1980, nas barbas do Rio Pinheirinho, fio de água temperamental, dado a humores e odores imprevisíveis. Quando os moradores o descrevem, é como se estivessem pintando uma Britney Spears vileira movida a caipirinha. Pois foi ali em riba que surgiu uma favela que entrou para os anais da paróquia – a Comunidade Profeta Elias. Merece um estudo. A "Elias" se tornou uma associação das mais porretas, tendo à frente frades carmelitas embalados pela Teologia da Libertação. Céus e terras tremiam na Vila Lindoia.

Basta dizer que dois dos mais importantes projetos sociais da capital nasceram de religiosos que atuavam naquele minúsculo e encharcado pedaço de chão – a Casa do Servo Sofredor, hoje no Sítio Cercado, criada pelo carmelita frei Chico. E a Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, obra do ex-carmelita Fernando de Góis, em Mandirituba.

A ideia de chamar a travessinha de "Esperança" teria surgido numa das muitas reuniões da comunidade, em meio a inflamados libelos sobre o direito à habitação. "Acho que foi a dona Dora que deu esse nome", arrisca a veterana Araci de Andrade, na área "desde os tempos que era tudo capoeira". Dora planta rosas rente ao muro, um luxo. A oficialização dos terrenos ainda não veio, mas o nome que deu ajuda pacas.

Na hora de fazer prestação, por exemplo. "Sinto lhe informar, mas não localizo seu endereço no sistema". Aiaiai,resta dizer a frase "não tenho documento, mas é meu...", esperar passar o espanto e conta a história. É a melhor parte. Alguém sempre pergunta "como é morar num lugar chamado Esperança".

A "Esperança" existe e é modesta, dizem. Lá as crianças brincam soltas, os vizinhos se conhecem e cuidam uns dos outros. Não sabem o que seja arranca-rabo, tão comuns nos condomínios elegantes. Não chega a ser uma miniatura do Divino da televisão, mas está perto de ser. E param por aí.

Não se deve lavar roupa suja fora de casa. O pessoal da travessa passa lá seus calvários. Melhor nem contar. Até do destemperado Rio Pinheirinho custam a reclamar. Preferem boas palavras, pois não fica bem morar onde moram e ficar espalhando amarguras. São "nem tanto ao Ford, nem tanto ao Wilde", pouca ambição e pouca ironia, como bem cabe aos que se nutrem de esperança.

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