| Foto: Antônio More / Gazeta do Povo

Não faz muito tempo, o engenheiro Venevérito da Cunha olhou para sua filha Dirlene e lhe fez uma confidência: “Acho que estou ficando velho”. Seguiu-se um suspiro breve. Ela não conseguiu segurar o riso. Àquela altura da longa história da humanidade, o pai tinha a idade que a maioria nem sequer sonha contabilizar – mais de 90 primaveras. Parou de trabalhar, de fato, aos 88. E nem sombra de cansaço, achaques ou efeitos colaterais. Há uma semana, dia 29 de agosto, completou 100 anos, debaixo de festerê. Só de descendentes de sua cepa, mais de 50 à mesa. Estava todo mundo lá, incluindo seus médicos e fisioterapeutas, que têm no paciente ocasional o melhor garoto-propaganda da praça.

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Segunda consta, Venevérito não voltou a falar do peso dos anos. A conversa com Dirlene tinha virado piada de salão. A exemplo de sua cúmplice em matéria de longevidade – a humorista Dercy Gonçalves, cuja boca suja admirava, “Vene”, para os íntimos, preferiu adotar para si a máxima de que “quem envelhece são os outros”. Dercy não é seu único modelo. Segue também o preceito de Fidel Castro: não se deve ter tartarugas como bichos de estimação. “Elas vivem mais de um século. A gente se apega. Quando o bichinho morre, é uma tristeza.”

As anedotas são boas, mas nenhuma delas supera a graça da realidade. Quando criança, na Florianópolis natal, Venevérito ia com o pai – um carpinteiro e músico de altíssimas habilidades – ao cemitério onde estava enterrada a avó. Era um lugar estranho, beira-mar, aos poucos retirado dali para dar lugar a uma das pilastras da Ponte Hercílio Luz. Dali em diante, não conseguia olhar para a ponte sem lembrar que um dia, a seu pé, esteva sepultada a antepassada. Vene cresceu cultuando aquele monumento – o que deve ter influenciado sua escolha pela engenharia e, por tabela, pela vida.

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Assim permanece. Passa bem que é um piá. Tirando uma dorzinha ou outra nas costas e o ouvido que teima um curto-circuito, nada lhe aflige. “Sabia que eu ainda leio sem óculos?”, exibe-se, e com razão, já que a presbiopia não poupa ninguém. Ou quase ninguém, como agora se sabe. Inútil sabatiná-lo sobre os segredos de tamanha saúde – faz sesta sem culpa, come de tudo e nunca praticou cooper. Está longe do modelo “velhinho power” que a imprensa adora cultuar. Para não dizer que desafia os imperativos do tempo, há alguns meses ditou suas memórias para a filha cuidadora, que as editou em livro de circulação restrita entre amigos e parentes.

Inútil sabatiná-lo sobre os segredos de tamanha saúde – faz sesta sem culpa, come de tudo e nunca praticou cooper

O veterano Venevérito nasceu de família modesta num Brasil arcaico. A descrição de sua infância caberia nas páginas de Jorge Amado, Graciliano Ramos ou José Lins do Rego. “Eu sou bisneto do padre Cunha”, apresenta-se, dispensando justificativas para as escapadelas do cura português que marcou época naquelas bandas. “Padre Cunha” tinha fama de curandeiro, dom que lhe garantiu vista grossa por parte dos fiéis. Suas escapadelas a Deus cabia. Em terra, mereceu até uma rua com seu nome em Floripa. Também viveu a eternidade e mais um dia, tal como agora seu descendente. E não se fala mais nisso. Vene prefere mesmo é tratar dos pais, Francisco e Germínia. Tal como aconteceu com a centenária Úrsula inventada por García Márquez em Cem anos de solidão, os dois lhe parecem estar sentados com ele no sofá.

Ela nasceu na Paraíba, filha de militar. Mesmo nos tempos ruins, não saía de casa senão do alto de um salto – geralmente para uma visita à biblioteca pública, de seus endereços o preferido. Lia com paixão, tendo Vene, ou Nequinho, o caçula, preso a sua saia, exposto à influência de Conan Doyle. Ao lado dos livros, o cinema – os filmes de Chaplin em particular. O pai era catarinense, expert em instrumentos de cordas e sopro na vetusta Orquestra dos Cupins, a banda “Amor à arte”. Estando em casa, camisetas cavadas e navalha na barba, solfejava com precisão de um Villa Lobos – o que explica os pendores do filho para os cálculos. Sempre que podia – e não eram muitas vezes –, presenteava o pequeno com o Almanaque Tico-Tico, biotônico de sua curiosidade por tudo que é coisa. E insistia que tivesse um ofício. E o ofício foi a alfaiataria – a primeira engenharia que praticou.

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É certo que deu aulas particulares de Matemática para aumentar a renda, mas o maior empenho se deu no manejo de tesouras, moldes e tecidos, nem sempre remunerado, pago com favores. Conta que certa feita, ao se indignar com o bico do sapato aberto, sentou-se perto da Hercílio Luz e amaldiçoou a má sorte de ter de dormir em porões, de não ter um puto no bolso. Até lhe restar enxugar a cara. Sabia de cor todas as capitais do planeta e tinha passado ileso pela gripe espanhola – faria a órbita da Terra se preciso fosse.

Do tempo das alfaias restou a elegância – que o tornou um misto de Nat King Cole com Fred Astaire. Suas fotos de mocidade são de um guapo na estica, que mal deixa transparecer o duro que deu. Foi a bordo de um terno de linho – exposto à crueldade das faúlhas do trem – que chegou a Curitiba, em 1938, para se matricular na Faculdade de Engenharia. Aqui, contou com a bondade de estranhos, como gosta de bradar, e de bolsas de estudos dadas em gotas. Vagou em busca de pensões baratas e gravitou em torno da burguesia curitibana, sua colega de carteira na Universidade do Paraná.

Venevérito podia não ser um deles, mas não havia melhor calculista do que ele. Não estranharia que se jogassem ao chão lencinhos de cambraia para que ele pisasse, em troca da garantia de que um prédio não ruiria. Mesmo antes de formado, era disputado a tapas para parcerias com colegas de ofício e arquitetos. Assinou plantas com bambas modernistas como Elgson Ribeiro Gomes, Lolô Cornelsen, Rubens Meister e Romeu Paulo da Costa. Seu maior orgulho dentre tantas obras: ser parte do projeto da Biblioteca Pública do Paraná. “Minha mãe gostava de ler.” Sim, em segredo, a mais importante casa de leitura do estado foi erguida em honra da paraibana Germínia.

A lista de prédios que levam o nome de Venevérito é extensa e foi levantada por Dirlene. Entre eles está uma casa com varanda no Alto da XV, onde vive. Ergueu-a para Lia Saboia, a mulher que amou e com quem teve nove filhos. Conheceu-a ainda guria, numa das idas à Lapa para fazer cálculos de argamassa. Era filha de um herói, João Teixeira Sabóia, indicativo de que o flerte não passaria do cerco do portão. Até que anos depois a viu cruzar a Rua das Flores, moça feita, dona de uma beleza que não cansa de cantar. Avisou a quem estava em roda que ia viver com ela, e saiu em disparada em sua direção. Ela o reconheceu. Casaram-se debaixo de uma guerra, em 1945 – e foram felizes, inclusive porque ele tomou como elogio o ciúme da companheira, temerosa dos olhares gulosos despertados pelo marido esguio, cabelo à gomalina, bigode de Valentino e sempre muito à vontade dentro de um terno vincado.

É bom lembrar que o carro da casa dos Cunha era sempre um furgão ou mesmo uma Kombi. Quando viajavam. Lia gritava à porta do veículo: “está todo mundo aí?” Riam. Certa feita, num avião, o comandante, um conhecido, avisou: “Cunhas a bordo”. A sala do casarão da XV teve de ser projetada grande o bastante para que coubessem os nove, suas namoradas e namorados, amigos e vizinhos. No andar de cima, uma sala de leitura gigante, para que estudassem. A edição da Enciclopédia Britânica e os clássicos da literatura envelheceram lindamente nas estantes. Ninguém visita Venevérito sem ser convidado a subir a rampa que leva até lá. Com sorte, o flagra ao som de Frank Sinatra e dos melhores blues.

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A quem interessar possa, Venevérito significa “aquele que vem de verdade”. Não se tem notícia de outro, exceto o filho mais velho. Os erros na pronúncia do nome são uma piada pronta – mas, como Vene conhece outras, melhores e mais cabeludas, acabam caindo no esquecimento. O que acontece mesmo é que as pessoas decoram como ele se chama – e dizem por aí: “Eu conheci um senhor incrível chamado Venevérito”.

Hoje é a minha vez.

(Coluna dedicada ao engenheiro Rafael Pussoli, que ama os pobres e os velhos.)