Faz tempo, era janeiro, uma manhã bonita no fim do mês. Eu tomava sol na Pracinha do Amor e uma moça sentou ao meu lado. Perguntou se eu era daqui (ela não era), se tive um bom começo de ano (ela não teve), se eu já tinha tomado café (ela não tinha). Desembolsei uma garça e a moça me contou que andava sem sorte, e que eu a perdoasse, era tudo culpa dela, quem mandou escolher a calcinha errada para o réveillon? Só queria vestir uma peça verdinha, vocês sabem, renascer com a esperança nos quadris. Mas não: a única que achou, estampada com uma perereca vesga, já estava bem velha e até furada, uma vergonha. Rimos os dois daquela graça meio triste, trocamos votos de felicidade, e ela se mandou, mancando, rumo à Panificadora Fênix.
Nunca mais a vi, e só voltei a pensar nela dia desses, mais de uma década depois. É que ali, na Saldanha ou na Ermelino, tenho esbarrado com frequência numa moça muito parecida. É quase a anterior ressurgida das cinzas, só que numa mesma maré de azar, sem renovação verificável. E sempre que cruza comigo, esta nova moça abre um sorriso e diz: “Parece que hoje é teu dia de sorte”.
Foi uma parada de dez segundos, mas serviu para nos livrar de um acidente. Alguns metros adiante, um grande galho se desprendeu e se espatifou na calçada
Sim, ela age como se fosse um prêmio oferecido ao felizardo que sou eu, mas às vezes acho que também acredita ser um talismã, o seu corpo um amuleto, capaz de nos transmitir um passe perfeito de força e saúde. Seja como for, apenas sorrio em resposta. Gosto dela, mas sigo em silêncio, com meu pacote de pão ou minha sacola de frutas.
Só na quarta passada é que falamos mais. Eu levava minha caçula ao postinho da Jaime Reis, tomar as vacinas necessárias. Uma chuva de verão ainda pingava das árvores da Ermelino quando encontrei a moça na esquina da Stellfeld. Encharcada, ela tremia e, pela primeira vez, não sorriu, não falou, nem sinalizou reconhecer no homem que passava, ou na menina em seu colo, qualquer indício de fortuna ou humanidade.
Meia hora depois, já voltando do postinho, passávamos em frente ao Operário, minha filha e eu, quando os grafites e adesivos no muro do clube chamaram a atenção do neném. Paramos para vê-los melhor. Ao lado das fotos de uma jovem nua, uma legenda posterior àquelas imagens decretava que existia amor em Curitiba, ou então que não existia, sei lá, não lembro direito.
Foi uma parada de dez segundos, mas serviu para nos livrar de um acidente grave. Alguns metros adiante, um grande galho se desprendeu do alto de uma tipuana e se espatifou na calçada, bem no nosso caminho. Escapamos por pouco.
Desci a ladeira grato e assustado, pensando no poder perturbador das coincidências, e reencontrei a moça-talismã no mesmo cruzamento da Stellfeld. Só que agora ela estava novamente conectada à nossa dimensão. Passou por mim e, sorridente, se dirigindo ao neném, deu a sua fala: “Parece que hoje é teu dia de sorte”. Minha filha sorriu e eu improvisei, de brincadeira: “A sorte é uma perereca vesga”.
A moça não estranhou aquele conceito, pelo contrário. Fez olhos de compreensão e logo os entortou para dentro, numa máscara alegre de estrabismo, mirando o futuro na ponta de seu nariz escorrido.
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