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Faz um mês. Era uma segunda-feira gloriosa, bem acima da média, e eu tinha acabado de trazer para casa, direto da maternidade, a minha segunda filha. Almocei, beijei o bebê e saí levar à escola a minha outra menina. Lá, as professoras nos receberam com festa, recitando o interrogatório de praxe: qual o peso do neném, e como vai seu estoque de fraldas, está mamando bem, e a mãe, recuperada? Na volta, eu caminhava pela Augusto Stellfeld, radiante, edulcorando a tarde com o mel de uma canção assobiável, quando, pouco antes de cruzar a Cabral, fui atacado por um cachorro.

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Era um vira-lata preto, estupidamente feroz, de porte médio e pelos escorridos. Surgiu do nada e me pegou à traição, no joelho direito. Para pintar o incidente com tintas mais patéticas, direi apenas que o bicho me mordeu como se ele fosse o amor e eu, a alma torturada de Dante Alighieri: com todos os seus dentes e toda a sua capacidade de ferir.

O cão, na verdade, estava numa coleira. Distraído, seu dono lia manchetes numa banca, esquecido da fera sem focinheira na ponta de lá da corrente. Depois de uma breve luta entre nós três, conseguimos nos apartar, e o homem me pediu desculpas, constrangido. Garantiu que sua cadela — ele a chamou por um nome feminino, de que não me recordo — era vacinada, e eu, indignado, fui embora, a calça nova rasgada, mas em melhor estado que a pele debaixo dela. Passei numa farmácia, consultei um suposto especialista, comprei um desinfetante e retornei ao ninho.

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Por duas semanas convivi com o incômodo daquela dentada, que insistia em me atrapalhar o sono e o trabalho. Desenvolvi, inclusive, uma paixão por aquela cachorrinha, que apelidei de Beatriz e que, a cada dez minutos, se fazia lembrar pela ardência em meu joelho, reaparecendo diante de mim em toda a sua fúria tapada e latejante, atravancando a felicidade das minhas horas mais serenas. Já me esqueci do rosto, das roupas e da voz de seu dono, mas serei para sempre capaz de reconhecer aquele animal entre outras centenas de guapecas pretos, de igual parvoíce e envergadura.

Sua mordida — marcante, em mais de um sentido — acabou me servindo de lembrete. O desenho de seus dentes, que hoje carrego na perna, em forma de meia-lua vermelha, tem me levado a reviver diversas ocasiões em que o inesperado, não raro desastrosamente, me estragou uma tarde de sol como a daquela segunda-feira, uma noite de sonhos calmos, e mesmo de agradáveis sonhos eróticos, um café entre amigos queridos ou uma festinha infantil.

O ataque de Beatriz — e a cicatriz que ele deixou — se tornou um genuíno gatilho proustiano. É como aquele telefone que toca de madrugada, a febre repentina de uma apendicite, o mensageiro que nos bate à porta com notícias fúnebres e feições compungidas, o motorista bêbado que cruzamos num amanhecer de domingo. Sim, é preciso estar preparado — mas não para os sustos e as tragédias: para as emoções alegres. Que não passem batido.

Há pouco falei de sonhos, e volto mais uma vez aos motivos oníricos, só para encerrar esta crônica de um modo positivo. É que neste fim de semana sonhei com Beatriz. Ela me apareceu aqui em casa, abanando o rabo, a barriga rosada para cima, pedindo perdão e carícias.

Perdoei e acariciei a cachorrinha, resolvido a acabar logo com aquilo. Para que cultivar a inimizade das feras? Eu é que não quero transformá-la numa personagem frequente em meus pesadelos. Vai que ela decide voltar todas as noites, feito um fantasma arrependido?

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Pois Beatriz está desculpada e, com isso, pretendo dormir em paz. Preciso estar descansado. A vida é arisca, mas já me pôs no colo duas meninas.

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