Você vem andando pela Boca Maldita, com pressa ou a passeio, pega a Oliveira Bello e cruza a Zacarias. Ou talvez tenha os seus compromissos na Westphalen, não importa, não há escapatória. No caminho, três homens o abordam, um de cada vez, profissionais, as feições austeras, mas simpáticas. Todos têm um mesmo convite a lhe fazer: que tal ir logo ali, naquela portinha? Basta caminhar mais dez metros, nem isso, e subir um lance de escadas. É lá que, caridoso, um especialista examinará os seus olhos. É grátis, você topa?
Eu nunca topei. Desconfio da gratuidade de qualquer mão estendida, mas me sinto tentado, confesso, a me aventurar por esses laboratórios de sonho e promessa. Ah, se eu tivesse a coragem, sentaria diante de suas máquinas e olharia fixamente, sem piscar, para o ponto que me ordenassem, um círculo de luz numa parede vulgar. Vai que numa dessas linhas esvaecidas, escrita com as sombras do alfabeto, eu não encontro a resposta para a pergunta que nunca lhes faço: afinal, o que tanto querem descobrir em nossos olhos? Nos meus, é certo, não verão cifrões; e se os virem, serão mágicos, e não médicos.
Melhor não dar atenção a esses caçadores do olhar alheio. Continue caminhando pelas quadras vizinhas, até esbarrar com um casal de cantores cegos. São muitos, incontornáveis, e sua configuração nunca muda: o homem com a viola ou a gaita, a mulher com o peito partido e a retidão no semblante. Nunca resisto a esses músicos, preciso ouvi-los. Cantam bem, é a regra, timbres ásperos e cordas enferrujadas, e ao escutá-los me pergunto se realmente trocariam seu poder encantatório pela capacidade comum de simplesmente ver o céu, como o assum-preto da canção.
Um dia, ouvi uma dupla cantar Boate azul, e a beleza daquilo me derrubou. Qual seria, pensei, a cor da luz dentro deles, a iluminação da casa noturna que se abriu, para nunca mais fechar, em suas vidas? Quando o espetáculo terminou, ninguém reagiu. Os artistas não ganharam nada, nem aplausos, embora todos ali tivessem aprovado o seu número.
Quando o espetáculo terminou, ninguém reagiu. Os artistas não ganharam nada, nem aplausos, embora todos ali tivessem aprovado o seu número
Experiente, o casal sabia não haver tocado as teclas que nos movem aqui, no breu de cada um, estes fios que nos ligam o coração às mãos, a intenção ao gesto. Mesmo assim, com a caixa de sapatos vazia a seus pés, os cantores nos abençoaram, que Deus fosse conosco e nos alumiasse pelo resto da tarde e na noite vindoura. Descrente, aceitei a bênção e parti, inexplicavelmente enriquecido.
Só que foram bem poucos os meus passos, e incertos, até cruzarem com os de um pregador local. Não sei seu nome, são tantos os profetas, e eu, incapaz de distingui-los. Homens complexos, que trazem a luz encadernada entre os dedos, aquela bíblia barata, cheia de orelhas-de-burro, a capa mole, o papel amarelado. Seus olhos irradiam certezas, faróis inapagáveis. Lembram não lanternas, mas aqueles holofotes de presídio: a luz denunciadora, inimiga dos desvios.
Não, não é bom parar e ouvi-lo, e nem seria necessário. Sua voz nos cavalga, nos esporeia por quilômetros, e é ameaça em cima de ameaça, maldições empilhadas: no lugar do perfume haverá podridão, a ursa e a vaca pastarão juntas, o leão comerá a palha do boi, o bebê brincará na toca da cobra, e quem fugir do terror cairá na cova, e quem sair da cova acabará no laço, e até a lua se envergonhará de nós, e a terra dará à luz os seus mortos.
Irritado, ao ouvir aquilo me afastei, para logo adiante cair na lábia de outro sujeito, um camelô risonho, mais dentes que olhos. Ele me barrou, dizendo: “Deus nos livre de tanta luz, patrão”. E, me ofertando os seus produtos, emendou: “Ou nos conceda ao menos a graça dos óculos de sol”.
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