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Toda sala de embarque é uma instalação macabra, um simulador de ponto final, uma cápsula do tempo às avessas. É ali que, aprisionados, caímos na real e duvidamos do futuro — ele não virá, nunca disse que viria. Lemos as notícias do esporte, especulamos sobre o desfecho da novela, folheamos best-sellers, mentimos ao celular e mandamos mensagens de esperança a entes mais ou menos queridos: "Chego às oito, marcamos um café, me espere de banho tomado, abraços à família, beijos na boquinha". Pensamento positivo, só isso, torcida mental. Não estamos certos de nada. Alguns fingem dormir: por dentro, uivam e queimam, arrancam os pelos do peito, lançam terra sobre a cabeça em chamas. Outros se dedicam a crucificar palavras em quadradinhos vazios, na vertical, na horizontal, na vertical de novo; como se as palavras, dispostas em cruz, fossem assumir alguma vocação messiânica e nos revelar um mistério maior, impenetrável, impossível de se imprimir em revistinhas. Sim, na sala de embarque fazemos de tudo para nos distrair da ceifadora lá fora e daquele seu equivalente mágico e mecânico, asas e bagageiros abertos, turbinas roncando à nossa espera.

Ok, nada disso é tão ruim, estou apenas exercitando minha paranoia. E, às vezes, a Provi­­dência se apieda dos homens na hora extrema do sufoco, nos dá aquela força extra, nos envia algo substancioso em que não pensar. Falo de mulheres, é claro, e daquela antiga e comovente fantasia masculina de, num avião, sentar-se ao lado de um anjo.

É raro, mas rola. Lembro de uma viagem recente de Curitiba a Londrina. No Afonso Pena, ainda pela manhã, fazia nove graus. Na sala de embarque não se via um pescoço sem cachecol, quando surgiu por ali uma loura muito alta, de cabelos presos, brincos de argola e imensos óculos espelhados. Calçava sapatilhas baixas, sem meias; vestia um moletom branco e um shortinho preto fabuloso, minúsculo. Parecia incorpórea, parecia não ter peso, parecia não crer no frio, parecia fácil, e todos os machos do aeroporto secretamente desejaram varar o céu paranaense ao lado dela. Ninguém mais olhava para seus gadgets; todos se rendiam a conjecturas íntimas, patéticas: ela não usava aliança, puxa, ela voava sozinha, trazia uma sacola da Dutty Free Shop, devia vir de Buenos Aires, lá fazia calor.

Coube a mim a aventura de sentar-se com o anjo. Entre nós, somente o corredor: eu na poltrona 21C, ela na 21D. Simpático, sorri e apanhei meu romance do Orhan Pamuk; ela, muito séria, depositou a sacola sob o assento e catou uma revista de bordo. Cintos atados, aceleramos pista afora. Ela descruzou as pernas para fazer o sinal da cruz e, assim protegidos, decolamos. Quando a aeronave se estabilizou, a moça soltou o coque, tirou os óculos e, acalorada, se livrou da blusa, ficando só de regata. Ao ver suas próteses de silicone, um bigodudo engravatado soprou, em meu ouvido esquerdo, o título de um samba-canção do Lupicínio: "Há um Deus". E completou, cheio de fé: "E Ele jamais abateria este avião".

Pode ser, pensei, relutante. Mas a loura, como se farejasse em mim um ceticismo rasteiro, decidiu me castigar. Abriu a sacola da Free Shop, sacou de lá um tubo de hidratante e o destampou. Encheu as mãos de creme e passou a esfregá-lo contra as coxas, as panturrilhas, os joelhos. Um aroma de morango dominou o ambiente. Era um código: imediatamente, o acaso nos atirou na mais apavorante das turbulências. Jurei ouvir o vibrato de Dalva de Oliveira: "Sei que não dorme quem vela por nós, e esse Deus lá do céu há de ouvir minha voz". Mas não. Era só o cara ao meu lado, gargalhante.

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