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Esta semana me bateu a lembrança de uma morte que já vai envelhecendo. É coisa antiga, tem mais de uma década. Ouvi meu telefone tocar muito cedo, na redação da Gazeta do Povo, e adivinhei do que se tratava. Era minha mulher, me contando da morte de um amigo de infância.

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Eu havia acabado de chegar ao trabalho, ainda organizava minha mesa, verificava a pauta da manhã. E do nada, ao comando daquela fórmula tão simples, “fulano faleceu”, a caneta que eu segurava secou, e mesmo o alfabeto perdeu sua função, e meus papéis murcharam. A cadeira sem braços, o computador diante de mim, os gaveteiros e os colegas atarantados, tudo virou pedra, uma paisagem de rochas absurdas.

Pedi dispensa e vim para casa, recém-nascido em outra vida, reaprendendo a andar na Rua XV. Tudo eu estranhava. A cidade parecia uma cobra velha que acabara de trocar de pele. Ou melhor: a própria cidade era aquela longa pele usada, disforme, descartada pela cobra.

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Sepultamos nosso amigo e fomos a uma padaria, aquele grande grupo de gente doída marchando em silêncio, e lá reinventamos o abraço, a esperança e os beijos

Entrei no meu apartamento, dei os telefonemas necessários, avisei quem devia ser avisado e, assim, sem chorar em instante algum, me tornei o arauto da pior notícia: “Fulano faleceu”. Enquanto durou aquela hora sem fim, não houve voz mais feia que a minha, nem palavra mais áspera. Exausto, o hálito ácido, a língua envenenada, saí ao terraço, para fumar e ver se os prédios vizinhos continuavam de pé.

Continuavam. Aparentemente, tudo estava bem lá fora, exceto meu canteiro de tomates. Eu não o regava havia dias, preocupado com tudo, menos com eles, os frutos que, num momento irresgatável de otimismo, eu mesmo havia plantado. E só quando os vi ali, secos, abatidos, beijando o pó, é que consegui chorar. Chorando, corri à cozinha, enchi uma jarra com a água da pia, e voltei regar as plantas, salvar o que não tinha remédio.

Depois fui ao velório. Revi pessoas queridas e, juntos, lamentamos nossas derrotas, desenterramos piadas internas, revisamos a história do morto, discutimos problemas comuns, e o balanço geral nos pareceu favorável. Na manhã seguinte, sepultamos nosso amigo e fomos a uma padaria, aquele grande grupo de gente doída marchando em silêncio, e lá reinventamos o abraço, a esperança e os beijos, e brindamos a todos, os vivos e os mortos, cada qual brandindo o seu copo de café com leite.

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Quando voltei para casa, já era hora de almoçar, mas eu não tinha fome. Fui ao terraço mais uma vez, na expectativa de avistar, no céu, algum pássaro alvissareiro ou um arco-íris sobre as nuvens. O que descobri, no entanto, foi que meus tomateiros, esturricados na manhã anterior, agora se erguiam viçosos, eretos, ressuscitados.

Conto isso porque, tanto tempo depois, continuo a sonhar com aquele amigo. No sonho, quase sempre o mesmo, dou com ele em minha casa e, espantado, pergunto se não tinha morrido. Ele responde que não e acha graça, era tudo brincadeira, um truque, olha, e me mostra o pulso quente, e aos gritos celebramos a farsa de todas as mortes.

Esta semana, porém, o sonho se repetiu com outro final. No meio de nossa conversa, percebi que meu amigo estava deitado no tapete da sala, subitamente mudo. Agachei-me ao lado dele, pus a mão direita em seu peito e pedi que me perdoasse. Ele sorriu e, de repente, o vi sumir. Minha mão descansava sobre uma pilha de roupas vazias, só isso, a camisa e a calça do morto, dobradas com perícia.

Apanhei a pilha, decidido a guardá-la na cômoda do meu quarto, entre minhas próprias coisas, e, pouco antes de fechar a gaveta, não pude deixar de notar que suas roupas estavam novas, perfumadas, perfeitas, e que as minhas, comparadas às dele, não passavam de grosseiros panos de chão.