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Luís Henrique Pellanda

Gatilhos

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Se escuto falar de romances, não penso primeiro em livros. Penso num beijo que se frustrou na adolescência, debaixo de um lance de escada. O beijo consumou-se, mas não foi bom, uma pena. E acabou virando um poema, igualmente ruim. Aliás, ouço falar de poesia e não penso em poetas. Não de cara. Penso, antes, em velhos cadernos de escola. Numa apostila de Matemática, pré-vestibular, rabiscada de haicais. E no desejo, também frustrado, de haver nascido mais para os versos que para os cálculos.

Se alguém me fala de sexo, lembro logo de um pôster. Me perdoem, mas, em minha memória, ele ainda se desdobra em tons brilhantes de rosa e dourado. Uma mulher nua, de nome alemão, escorre do miolo de uma revista para o carpete do meu quarto de menino. Sim, seu corpo é uma cascata, um rio de gruta. Era água cantando em minha gaveta.

Longe de nós, na hora extrema, não saber combinar os crisântemos com a gravata

Quando me falam da morte, vejo carcaças de automóveis. Dependesse de mim, ninguém a pintaria com feições de caveira. A morte é pura máquina, um autômato de metal retorcido. Segura um volante, e não uma foice. Me falam dela, e reencontro os avós e os primos ainda deitados. Ouço comentários banais sobre a beleza de certas coroas de flores, elogios à elegância deste ou daquele defunto. Longe de nós, na hora extrema, não saber combinar os crisântemos com a gravata.

Também me falam de amor, às vezes. E aí me lembro da igreja. Das moças e das imagens que me distraíam da missa. São Sebastião flagelado e seminu. A Virgem com o filho no colo, já adulto (mas morto e seminu). São José com Jesus no braço, envolto em santas fraldas. A igreja era uma galeria de estátuas bege, olhos vítreos, róseos mamilos masculinos, torsos abrasados. Entre elas, só se falava de amor.

E de Deus. Se me falam dele, penso no escuro que rodeava minha cama. Na ideia de que Deus só era possível no escuro, e de que se desenhava aos poucos, na reorganização mágica das estampas do papel de parede. Se eu acordasse e acendesse a luz, Deus iria embora? Na dúvida, tantas vezes preferi dormir no claro.

Ouço falar do inferno, cada vez menos, e me recordo de uma Bíblia em quadrinhos, hiper-realista, que ganhei ao completar seis, sete anos. Uma de suas ilustrações, em especial, não me abandona. Nela, não sei que turma de pagãos lança ao fogo suas crianças, nuas, sacrificando-as a não sei que deuses de boca de fornalha. Inesquecível o detalhe das nádegas infantis, cruelmente coradas.

Quando me falam da natureza, de pronto revejo um grande lagarto-do-papo-amarelo. Ele corre em meio ao capim seco do inverno, e vem descansar sob o pé de ameixa onde subi. No lugar da cauda, uma mutilação. Decerto esteve lutando. Venceu, está vivo, mas perdeu uma parte de si. Mesmo assim, parece íntegro. Um réptil orgulhoso.

Hoje, engraçado, quase ninguém mais fala de ameixas. Dizem “nêsperas”. Mas ameixa é uma palavra que chia, uma palavra amarela, que ainda me sabe melhor. E é por isso, penso, que minha memória permanece lá, no alto daquela árvore, presa ao sabor de frutas que já apodreceram.

Ou então é por causa desse lagarto sem rabo. Enquanto ele não vai embora, à espera de alguma regeneração, vou me aguentando nestes galhos.

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