Era a primeira tarde de sol em semanas. Eu andava pela Visconde de Guarapuava como quem passeia por uma praia interior, quilométrica, catando conchinhas à beira do asfalto. Antecipava um verão só meu e, cruzando a Bento Viana, encontrei, ancorado na esquina, um carrinho de papel. Seu dono descansava à sombra dos papelões, encostado na lateral do veículo. O calor o favorecia, era seu amigo, e o suor colava sua camiseta à musculatura de seus ombros e braços. Quase um menino, bebia água direto de um galão de gasolina de cinco litros.
Ele era, ou estava, muito bonito, e não à toa. Quem o embelezava era uma moça alegre, com quem dividia um cigarro. Ela vestia um daqueles uniformes tristes, de doméstica de novela, preto e branco da touca ao tênis, a saia não muito curta, mas bem mais curta que seus fêmures. Formavam um casal lindo, vocês tinham de ver, gargalhavam com vozes de cascata e espuma, e seus rostos tinham o brilho da pedra molhada.
Não acho que se vissem por acaso. Eles já tinham uma história, ou já a tinham projetado
Imaginei que se conheciam há anos. Tinham a mesma idade e viviam no mesmo subúrbio, filhos de comadres que frequentavam o mesmo culto, ou a mesma novena. Imaginei um levando a capelinha à casa do outro, num início de noite na década passada. E pensei na possibilidade de haverem planejado aquele encontro no meio da tarde, no Batel, só para aproveitar a passagem dele pelo bairro rico onde ela se matava de trabalhar, ou a saída dela para fazer alguma compra desnecessária na panificadora.
Não, não acho que se vissem por acaso. Eles já tinham uma história, ou já a tinham projetado. Passavam o cigarro de uma a outra mão, uma bola cada, e riam. Ele empinava o galão para ela e ela bebia do gargalo, desajeitada, até que uma boa quantia de água escorreu e ensopou o peito do seu uniforme, causando mais risos. E aí entendi que, sim, se amavam havia muito tempo, e quem sabe não ensaiavam, naquele instante, a palavra que finalmente tornaria oficial o desejo de um pelo outro. E também entendi que foi por causa daquele encontro feliz entre ambos, e só por isso, que o céu havia se limpado sobre Curitiba, revelando à cidade um sol litorâneo, alcoviteiro.
Pensei todas essas coisas em três segundos, acho, enquanto me aproximava do carrinho. E só então, bem perto dele, é que reparei na coleira que a moça segurava, e na cachorrinha amarrada nela. Pequena e peluda, calçando sapatinhos vermelhos, parecia oriental, mas não me arrisco a adivinhar sua raça. A seu lado, um guapeca a rodeava e, acorrentado ao carrinho, simulando desinteresse, observava o trânsito na Visconde com olhos de quem sabe que sua aliança com a humanidade já deixou de ser vantajosa. Mais serena, a cachorrinha fingia ler, desatenta, um panfleto imobiliário que alguém deixara cair na calçada. Eram dois tímidos flertando.
E aí percebi qual era a maior força daquele casal bonito que ria, fumava e se engraçava na esquina: a sua irresponsável delicadeza. Respeitar o tempo — pareciam dizer, enquanto namoravam e se divertiam — é permitir que as coisas, dentro e ao longo dele, simplesmente aconteçam ou deixem de acontecer. É deixar que os cães se conheçam, sem pressa.
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