Uma árvore pintada por Van Gogh é o retrato da alma de Van Gogh. Leio essa frase de Ernesto Sabato e vou vadiar no Passeio Público. É sábado de manhã, bem cedo. Penso nos ciprestes do artista holandês e na ideia do escritor argentino enquanto ando à sombra destes jacarandás curitibanos. Neles, enroscada num galho qualquer, tento avistar minha alma. Vejo garças e socós. Ali, um mono-carvoeiro. Um papagaio de testa azul. Dou duas voltas no parque. Investigo a feira de orgânicos, tomada por jovens caçadores de pokémons, e de repente compreendo: tudo aqui é alma. De quem, não perguntem.
A própria piranha do Passeio Público, cujo isolamento tanto tem me mortificado, também é uma alma. Ou várias almas reunidas, o que amenizaria, quem sabe, a sua solidão. Decido visitá-la antes do horário de pico, mas chego tarde ao aquário, uma família numerosa já a cerca e fotografa. Mulheres, homens, crianças e adolescentes ruidosos. Ignoram os avisos da administração, “Favor não bater no vidro”. Não só batem como batucam. Atiçam o peixe dentuço, fingem socá-lo entre os olhos, cadê a cruel assassina?
Este povo logo estará farto de sua presa e, aí sim, todos irão para suas casas, morder-se uns aos outros
A piranha se enerva, dá botes inúteis contra aquele punhado de dedos, e essa reação, tão intempestiva quanto ineficaz, provoca um frenesi entre os humanos. Eles gargalham, gritam e apontam para o peixe os seus celulares. A piranha deixou de ser real. É só mais um pokémon a capturar.
Uma moça, diante do aquário, ao enganar pela décima vez o peixe que, em vão, busca feri-la, não se contém e exclama: “Jesus, como é burra!” Uma injúria que me exaspera. Penso em intervir, defender o bicho, investir contra aquela gente, relembrá-los da advertência de não tocar nos vidros, será que não sabem ler, onde o respeito? Mas me descubro subitamente acovardado, me calo diante da infâmia, a piranha não contará comigo. Trata-se de um cardume predatório de dez pessoas, melhor vazar em paz, nunca fui de confusão. Além do mais, este povo logo estará farto de sua presa e, aí sim, todos irão para suas casas, suas camas, suas mesas, morder-se uns aos outros e beber do sangue que os une.
Lá fora o parque também lotou, efeito deste sol de fim de inverno. Esbarro com outra família, bem menor, pai, mãe e filho, o menino pendurado no viveiro dos pavões. Uma das aves se aproxima dos visitantes e, talvez para desopilar-se, abre a cauda diante de seus celulares. De pronto me lembro do pavão de Rubem Braga, “arco-íris de plumas” que, feito os melhores artistas, usava “um mínimo de elementos”, sol e água, para atingir “um máximo de matizes”. Pois aquele pavão, de acordo com Sabato, seria a alma de Braga, assim como os ciprestes, a de Van Gogh.
Sim, eu sei, pavões de leque aberto são clichês de beleza, mas, vocês sabem, sempre haverá quem os veja pela primeira vez. É por isso que o menino se boquiabre, e a descoberta de tamanha exuberância faz com que uma pergunta comovente salte de dentro dele: “Isso é de verdade, mãe?”
A mãe não responde. Nem ela nem ninguém sabe a resposta. Mas, por via das dúvidas, o pai captura o pavão em seu celular, e bem rápido, antes que a ave lhes escape para sempre, pulverizando-se na luz virtual dos sábados de Curitiba.