Toda madrugada é o começo do mundo. Às vezes me vem esse verso de Emiliano Perneta. Vem quando acordo antes do sol, à caça do que escrever, e vejo a cidade clarear na janela. Neste sábado, por exemplo, levantei e vi as garças no Passeio Público. Elas voltaram, pensei, já lotam a copa dos plátanos pelados. Anunciam o fim do frio? Duvido. E é nessas horas de duvidar que me vem o tal verso — além de uma vontade de ir ver de perto as garças, na Ilha da Ilusão.
Deixo a manhã esquentar e desço ao parque. Debruçada numa ponte, uma mulher se oferece. Está ali desde o século 19, dando pipoca às carpas. Quando um peixe abocanha a isca, ela cospe em sua cabeça. Caso o acerte, sorri. É um cuspe pegajoso, que se alonga verticalmente, emprestando à mulher um jeito de aranha. Atingidas, as carpas não se ofendem, apenas submergem. Para elas, sabedoria é isto: saber submergir, com placidez.
Na Ilha da Ilusão, encontro uma mãe com três filhos. Escalam o pedestal onde fulgura o busto de Emiliano. Encaram o poeta e querem saber tudo dele, quem é, e por que tão feio? A mãe consulta a placa: mais respeito, foi um príncipe. Mas as crianças duvidam, com esta cara de velho? Majestoso, Emiliano não reage. Impassível como uma carpa.
Toda madrugada é o começo do mundo. Às vezes me vem esse verso de Emiliano Perneta. Vem quando acordo antes do sol, à caça do que escrever, e vejo a cidade clarear na janela.
Os meninos caem fora, e chega a minha vez de subir ao pódio do poeta. Descubro o mirantezinho forrado de papéis de bala, pazinhas de sorvete e preservativos usados. Um deles ainda brilha, úmido, serpentino. Olho ao redor, como faria um caçador ao topar com uma pista fresca, procurando o animal que o fascina. O casal ainda deve estar por perto, mas já apartado, cada um na sua trilha. Toda a cola que os unia ficou ali, no látex, oferenda viva a um poeta morto.
Vejo dois namorados entrando no aquário e entro junto. Acabaram de se conhecer. Calados, param diante da piranha solitária. O peixe é deslumbrante em sua tristeza, parece cravejado de pedrinhas vermelhas, e aquilo apaixona a moça. Ela despreza os avisos, alisa o vidro que a separa do bicho e vai aproximando dele a boca, fisgada pelo rubi de suas escamas, como quem se apronta para o beijo. Enciumado, seu acompanhante a interrompe: onde já se viu, a piranha ganhar beijo antes de mim?
Voltando para casa, reencontro a mulher das carpas. A pipoca acabou, mas não sua saliva. Ela continua a cuspir no tanque, ciente de que seu cuspe não muda nada. Por conta dele, as águas não se avolumam nem ficam mais sujas. Ele é (só agora o percebo) quase como este texto; está destinado a se diluir, indistinto, num poço de outros textos. Feito a madrugada do poeta, uma crônica se dissolve devagar, na expectativa, real ou ilusória, de mais e melhores manhãs.
Lembro do que me escreveu recentemente um amigo, o escritor Sidney Rocha, lá do Recife: “É preciso amar muito para ser cronista. O cronista é alguém que nos empresta o peito para atravessar a cerca, o arame, para lidar com a farpa. Por isso a prescrição da crônica logo cedo”.
Agradeço ao Sidney pela fé nestas forças. E, na falta delas, refaço o verso de Emiliano: que toda a madrugada possa ser o começo de uma crônica. O fim do fim do mundo. Amemo-nos todos, portanto, e depressa, que a noite vem aí. Duvida?
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