Hoje nem sei se elas existem. Mas há uns 20 anos eram muito comuns aqui no Centro. Ao redor de várias casas noturnas, à porta dos menores bordéis e danceterias, multiplicavam-se as carrocinhas de cachorro-quente. Guarda-sóis abertos na madrugada fria, não nos davam sombra, e sim calor. Debaixo deles, à disposição dos aventureiros, nos atraíam os bufês monumentais. Porque não se tratava apenas de comer um pão com duas vinas, pincelado com maionese e mostarda batizadas, condimentos à beira da falência. Havia também a batata, frita ou cozida, a farofa, o picles adocicado, a seleta de milho, ervilha e cenoura. Tudo prestava: os rabanetes, as couves-flores, os pimentões ao sereno. Pagando-se um preço único, você se servia à vontade e, bem ou mal, sobrevivia para dar seu testemunho.
Eu abusava. Era outra época, e outro o meu corpo. Frequentador daquelas ilhotas iluminadas, fiz amigos em torno delas, enquanto aguardava a aparição do sol ou do madrugueiro. Eram portos onde se comerciavam histórias, onde os peregrinos se reuniam em volta do fogo e das moças. Elas saíam das boates da região, exaustas, de cabelo preso e rosto lavado, a aparência infantil reforçada pela graça de suas mochilinhas de balé. Paravam junto às carrocinhas para merendar e ouvir a prosa perdida da humanidade. Clubes móveis, democráticos, ali se matavam as horas e as fomes.
Numa dessas barracas, perto da Rui Barbosa, várias vezes encontrei um moço, pouco mais que um menino, que por lá aparecia, noite sim, noite não, com imensos olhos azuis, olhos de Cristo de calendário, em busca de comida grátis. Ao vê-lo se aproximar, o dono do negócio já começava a preparar um sanduíche caprichado. Paciente, o menino esperava seu lanche ficar pronto. Era uma rotina afônica, havia muito incorporada pelos dois, uma negociação simples. O vendedor entregava a comida ao rapaz, que agradecia, mudo, e caía fora.
Ninguém, em pleno juízo, negaria uma refeição ao filho de Deus
Falei que o guri tinha um olhar chocante de bondade, e não minto. Algo nele prenunciava uma crucificação, uma missão inescapável, uma coroação de penas. Ele apanhava seu cachorro-quente e se afastava de nós sem emitir um som; desfilava com passos de feltro, como se flutuasse em direção às sombras, levando nas mãos não uma salsicha fumegante, mas o próprio coração de Jesus. O moço era uma bela pintura religiosa, uma quieta incandescência.
Tanto os observei que resolvi me intrometer. Perguntei ao vendedor como funcionava aquele acordo silencioso entre ele e o moço. O homem pediu discrição e, cochichando, me disse que ninguém, em pleno juízo, negaria uma refeição ao filho de Deus. Ele só estava fazendo o que lhe fora ensinado, lá na infância, por sua falecida mãe, a melhor das professoras de caridade. E, com isso, encerrou o caso.
Pouco depois desse episódio, já nem lembro o motivo, parei de comer cachorros-quentes na madrugada. Mas, por um bom tempo, continuei a frequentar a noite, esperando pelo ônibus e pelo dia naquele mesmo palco. Ali, reencontrei diversas vezes aqueles dois personagens, que não se cansavam de repetir a mesma cena. Até que, como sempre acontece, o pano das décadas caiu sobre a gente.
Conto essa história a vocês porque, esta semana, revi o seu protagonista. O menino encorpou, é claro, já passou dos 30. Eu o reconheci pelo olhar messiânico, pela profundidade de seu silêncio e pelo modo como mastigava um pastel de carne, ali na Brasileira. Não sei se trazia a paz ou a espada, mas estava bem diferente, transfigurado, ainda mais bonito, num vestido leve de meia-estação, as sandalinhas baixas e a pele agora bronzeada, exposta à mesma luz que nos queimava a todos.
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