Tive um Natal de criança: ganhei um telescópio. Foi um presente inesperado da minha mulher e, desde que o montei, venho me sentindo como o Rubem Braga daquela crônica sobre Aldebarã, “com o coração puro de um menino”. Sim, na infância, eu sonhava em ganhar a vida observando o céu. Hoje, trabalho com a possibilidade oposta: descolar algum céu observando a vida.
Tem funcionado, não reclamo. Afinal, cresci e ganhei um telescópio. Ainda não sei bem o quanto posso fazer com ele, mas tenho um longo manual em inglês para estudar. Por ora, me divirto intuitivamente, e minha filha mais velha também. Desde que o telescópio chegou, ela orbita ao nosso redor como um cometa descabelado. Pela primeira vez, temos a mesma idade. E dividimos a mesma angústia de querer ver uma estrela de perto.
Em Curitiba, vocês sabem, isso não é fácil. Esperamos vários dias até avistar, entre as nuvens de chuva, uma estrelinha, a nossa pobre Aldebarã. Tímida, ela só apareceu na quinta noite de vigília, quase na véspera do ano-novo.
Olhar demais para as estrelas pode machucar um homem de meia-idade
Corremos instalar o telescópio no terraço, operação que me fez suar: eu precisava mirar, focar, escolher as lentes certas. Tudo era de um sofrimento milimétrico, fruto de astronômicas ignorâncias. Qualquer brisa me fazia perder a pista da estrela, mas, no fim, consegui. Minha filha e eu a vimos acenar para nós, quase íntima, enorme, nos mandando um beijo vermelho, azul e verde da ponta de lá do cilindro preto.
Impotentes, não soubemos corresponder. Mas, aos poucos, de tanto olhar para a estrela, as luzes do apartamento apagadas, passamos a enxergar outros corpos, menores ou mais distantes, à sua volta. E até um óvni deu as caras: uma lampadinha mirrada cortou a noite curitibana no sentido sul-norte, descrevendo uma leve curva sobre a cidade. A travessia durou uns três minutos, e minha filha pirou. Tentamos capturar o objeto com o telescópio, mas de que jeito? Ele sumiu, livre, atrás da Torre das Mercês.
Pela manhã, a menina apanhou seu diário de ilustrações e, nele, desenhou a estrela que vimos do terraço. Ela a pintou com todas as cores do arco-íris, exagerada, e viu que aquilo estava bom. Depois, decidiu registrar também o óvni: um ponto de canetinha no firmamento, um gancho interrogativo e dois raios dourados se arrastando atrás dele, paralelos, simbolizando minha imperícia e nossa estupefação.
Ficou ótimo. Sorri para ela, mas com dificuldade. Eu curtia minha primeira ressaca como astrônomo amador. Acordei com dores infames no pescoço e nas costas. Olhar demais para as estrelas pode machucar um homem de meia-idade, pensei; eu devia ter me alongado antes de passar tanto tempo imóvel sobre um telescópio, caolho, a nuca enrijecendo ao vento.
À noite, o ano virou nublado, normal, e tudo que vimos foi o foguetório de sempre, essa nossa tentativa de incendiar o céu, devolver aos deuses o fogo que, um dia, roubamos deles. Mas para minha filha, feliz por ter vencido a barreira da meia-noite, inventei outra teoria. Soltamos fogos para desenhar no espaço. Se o universo nos tem negado suas estrelas, providenciemos as nossas.
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