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Dizem que ele foi garçom. Que ficava lindo de gravata-borboleta. Que, se deixassem, teria servido mesas até o fim da vida. Não deixaram, não me perguntem por quê. Ninguém sabe. Só dizem que, de repente, algo deu errado e ele acabou na rua. Ou melhor, não usam este verbo, acabar é negativo demais, e ele, na verdade, ainda não acabou. Dizem que recomeçou na rua. E que nunca deixou de servir os outros.

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Não que eu acredite nisso. Só conto o que me contaram. Garantem que o Garçom — e é este o seu apelido – continua a carregar suas bandejas por aí, a céu aberto. Age sempre no Centro, na hora das refeições, nunca numa mesma região. Gosta de variar: cardápios, temperos, freguesia. Percorre restaurantes, pastelarias e lanchonetes pedindo marmitas. Acumula o que sobrou, o que ninguém quis comer, o que já está pago. O lixo, antes de ir para a lixeira.

Em geral, consegue o que quer. São poucos os gerentes que não o atendem. O Garçom tem olhos doces, a voz desprovida de malícia, modos obsequiosos. Imaginem um mordomo sem-teto a serviço do sol e da lua. Por que não dar a ele um pratinho de alumínio transbordante de macarrão?

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Extrai-se sempre alguma verdade da maneira como processamos as mentiras, as fofocas, as lendas, a ficção

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Não custa nada, mas, claro, há quem lhe peça favores em troca de um pacote de ossos, uma sacola de gordura. Que empilhe uns engradados de cerveja. Que lave a calçada em frente a determinado estabelecimento. Quando isso acontece, dizem que o Garçom agradece polidamente, mas se retira, nada feito, não está lá para fazer faxinas, e sim negócios, combater os desperdícios. Não que se ofenda ou seja preguiçoso. Só prefere não misturar as competências, respeitar sua especialidade, dar prioridade à vocação que lhe coube.

Às vezes, num almoço, ocorre de angariar cinco quilos de comida, em restaurantes diferentes. É um lote generoso, do qual o Garçom nunca prova. Jamais o viram mastigando uma única batatinha frita. É um profissional. Equilibrando os pratos no antebraço esquerdo, sai pelas praças e calçadões, elegante, atrás de sua clientela, seus parceiros de marquise, fome e sonho.

Só não o tomem por um santo, um mártir da mendicância altruísta. Também há vaidade, orgulho e egoísmo nesse homem. Já me disseram que tem os seus dias maus, no que seria igual a qualquer um de nós. Contam que certa noite, movido por um ressentimento particular, foi visto servindo um rato morto a um colega de rua. Noutra ocasião, teria sido uma asa de pombo. O próprio fígado numa bandejinha de isopor. O coração, a língua, as tripas, a alma. Vocês sabem. O lixo, antes de ir para a lixeira.

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Não peço que creiam nessas coisas. Eu mesmo não creio. Mas peço que as considerem, não custa nada. Extrai-se sempre alguma verdade da maneira como processamos as mentiras, as fofocas, as lendas, a ficção. De minha parte, sobre o Garçom, só digo que o encontrei poucas vezes, aqui na Ébano Pereira. E ele nada fez além de me cumprimentar daquele seu jeito original, entre o gentil e o maníaco, emendando uma frase na outra: “Em que posso servi-lo? Volte sempre”.

Ótimo sujeito, dizem que ficava lindo de gravata-borboleta. E que ninguém lhe negava, então, os seus dez por cento de nada. Dizem.