| Foto:

Você toma uma média no balcão enquanto escuta a conversa de duas crianças. Um menino ruivo diz a um amigo que, bem cedo, naquela mesma manhã de sol, fez uma descoberta fantástica perto do Passeio Público, a cinco ou seis quadras dali. Apesar de se expressar mal, e de ser ainda muito pequeno, ele jura que, horas antes, deu com um bicho novo, diferente, lá na rua do expresso. Era um pássaro vermelho, enorme e parcialmente depenado, que o obcecou não só por seu porte descomunal, mas também pela dignidade com que expirava, em meio ao lixo e à folhagem.

CARREGANDO :)

O outro menino, mais velho, bebe o seu refri em silêncio. Reserva-se o direito da dúvida. Não sente dó do animal imaginário e até faz olhos de quem descrê na mera existência dos pássaros. Problema dele, claro, não seu. Você é este observador diário de aves impossíveis, e por isso mata seu café sem pressa, e pega a Generoso Marques levando consigo, no peito, o relato fantasioso do menino ruivo.

Já na Galeria Andrade, a coincidência: você vê primeiro uma, depois três, quatro penas vermelhas sopradas por uma brisa rasteira. Deslizam pelos cantos do corredor, acompanhando o lento fluxo de gente que escoa da Presidente Faria. Você se empolga com aquilo, acha graça e sabe que, apesar da meia-idade, já está preso a mais uma missão juvenil de desbravamento.

Publicidade

Ao sair da galeria, outro susto: o céu subitamente fechado, a luz morrendo antes do almoço, prenúncio de chuva, tédio, preguiça. Os biarticulados roncam e fazem vento, tiram para dançar outro bom punhado de penas vermelhas, bagunçando o longo rastro de plumas que se estende até a esquina da Tobias de Macedo. É preciso seguir aquela trilha, você sabe, não perderá nada com isso, há tempo de sobra para mais uma caçada. Afinal, viver é estar sempre disponível para as perseguições imprevistas.

E é preciso resgatar o estranho pássaro do menino. Suas penas, ainda bem, não vão longe. Elas o levam a um terreno em obras, ameaçado pelo mato, onde um imóvel antigo acaba de ser demolido. Ali, uma caçamba cheia de entulho aguarda alguma providência, e centenas de plumas se amontoam ao seu redor. Real ou não, é atrás dela que está o bicho, talvez dormindo seu último sono, e é por isso que você se aproxima com tanto cuidado: para não despertar aquela ave que, no fundo, é a própria imaginação do menino – esse artigo delicado que, uma vez desperto, pode nunca mais sossegar.

Mas você não encontra um pássaro, e sim um homem. Ele dorme entre cacos de telha e tijolo, vidros quebrados, restos de festa. Veste calças amarrotadas e uma camisa social úmida e aberta. Está sem meias e sapatos, os pés machucados. Em tudo seu visual é sóbrio, menos na cabeça, coberta por um vasto elmo carnavalesco, uma samambaia de penas tingidas, cor de sangue. Sua cara sardenta é a de quem se cansou demais e se divertiu um pouco, embora o olho espetacularmente roxo. Da testa ao pescoço, exibe marcas de batom e leves escoriações. Mas calma: ele não agoniza.

Você até pensa em acordá-lo, perguntar se ele está bem e fazer de sua resposta o tema de uma crônica. Só que não é preciso. Você o deixa dormir mais um tanto, pois aquele mistério já lhe basta. O torpor do homem depenado, o segredo de suas aventuras, o vermelho em sua fronte, a noite mágica de que emergiu, os indícios frescos de amores e brigas em seu corpo exaurido, tudo isso há de servir. Pode até ser que ele esteja sonhando e, no sonho, ainda preserve a integridade de sua plumagem. Vai que ainda voa na madrugada clara de ontem?

Não, não será você a retesar a setra.

Publicidade

O colunista Luis Fernando Verissimo está em férias