Conheci, aqui em Petrolina, o poeta Miró, e justo no dia de seu aniversário. Ainda é um menino e já fez 56 anos. Comprei seu livro e, no hotel, decidi que o abriria aleatoriamente. A ideia era consultá-lo como quem visita um oráculo ou toma um calmante antes de ir para a cama, providenciar novos sonhos intranquilos. Caí na página 25 e relaxei: “Tem gente que diz bom dia e do nada morre à tarde”.
Acordei vivo, muito cedo, com o canto de uma dúzia de galos. Em Petrolina, desde que cheguei, tem sido assim. O dia amanhece vitorioso na margem pernambucana do São Francisco, e o rio logo me convida às suas praias, também cantando. Anuncia a mais perfeita, a mais fluida acomodação das coisas.
E se o Chico me chama, eu vou. Dias atrás o cruzei pela primeira vez. Segui o povo que caminhava na direção de um pequeno barco atracado na areia. A passagem custava R$ 1,30. Pinguei as moedas na mão ossuda do barqueiro e girei a catraca. Me sairá barato, pensei, esta travessia mística. Mas na hora embarquei ressabiado, sempre ouvi dizer que maus espíritos não cruzam a água corrente. Só que não, calma: não éramos espíritos, não somos sequer bons ou maus. Apenas homens pequenos cruzando um rio grande, rumo a Juazeiro da Bahia.
O jornalista Schneider Carpeggiani, que me acompanhava, apontou uma inscrição no espaldar azul de um dos bancos do barco: “Seu dia vai ser lindo”. E realmente foi. Apesar de cético, agradeci àquele estranho que um dia se preocupou em desejar 24 horas de beleza a outros passageiros de uma mesma embarcação, tão desconhecidos quanto ele. Só espero que a morte não o tenha posto a pique numa tarde dessas, como imaginou Miró.
No meio da travessia, eu pensava vagamente nas ondas, na vida subaquática, na Ilha do Fogo, na ponte. Havia piranhas naquele trecho do rio, foi o que me contaram, mas mansas a ponto de poderem ser ignoradas, atacando raramente e, quando muito, mordiscando algum desavisado. Aquela presença remota, contudo, já serviu para reativar, em mim, a imaginação de menino. A piranha sempre me pareceu um animal emotivo, um peixe de cardume e de ação, sujeito a frenesis. Desde a infância, piranhas me lembram corações com presas, bandos de corações predadores, vermelhos, submersos.
E de repente, em pleno leito do Chico, me veio à memória uma vizinha curitibana: a piranha solitária do Passeio Público. Aquele peixe apartado de seu grupo, flutuando num aquário do tamanho da minha bolsa de viagem. Uma solidão prognata capaz de morder e tirar pedaços, uma voracidade tornada inútil, exposta à apreciação insolente de crianças, casais e famílias.
Era a cabal representação da injustiça. A piranha solitária do Passeio Público lá em Curitiba, e eu aqui, em Petrolina, singrando o São Francisco, vencendo divisas, abraçando amigos, comendo bodes, tamarindos e tapiocas, zerando minhas fomes.
Desembarcamos na Bahia, por fim. E andar pelas ruas estreitas de Juazeiro, sob o olhar vigilante de velhas carrancas, me devolveu à firmeza da terra. Caminhemos, pensei, a tarde se aproxima, e há que se deixar algum rastro neste mundo. É como li em outro poema de Miró: dos idiotas, nem as calçadas sentirão saudade.
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