Ela sobe a Agostinho Leão, a pé, embora não esteja vestida para andar. É bonita, acima da média, mas descrevê-la seria perda de espaço e credibilidade. Basta que vocês a recriem a partir de seus padrões mais elevados de beleza, e depois a vistam com roupas inadequadas ao calor e à caminhada. Sim, é certo que não está à vontade e que parece perdida.
Estamos na esquina do Couto Pereira. Como se me pressentisse, a mulher olha para trás. Sorri e me espera. Decerto perguntará de algum endereço. Mas não: em vez disso, abre a bolsa e a vasculha. De lá, resgata um maço de cigarros, não reconheço a marca. Ela me cumprimenta, sua voz também é bela. Quer saber se tenho fogo, por favor, e fala com um sotaque alienígena, que me soa igualmente irreconhecível, apesar do português correto.
Sempre me sinto impelido a revelar minhas abstinências, em especial a de tabaco
Digo que não tenho, me desculpe, e ao responder resisto à tentação de bater papo e contar que não fumo mais, parei há 13 anos. Sempre me sinto impelido a revelar minhas abstinências, em especial a de tabaco, mas prefiro me calar, seria rude de minha parte. Não sinto orgulho de ter parado e nem quero censurar ninguém, não sou de dar conselhos. Somente gosto de falar sobre cigarros, e até de sonhar com eles, assim como gostava de carregar o fogo comigo, um deus em meu bolso ou entre meus lábios, e acioná-lo quando bem quisesse, por necessidade ou gentileza. Fumar é bom, sei o quanto de prazer jogamos fora ao abandonar um vício.
E sei que a mulher não quer falar sobre nada. Ela quer é fumar, quer o gozo pelo fogo, e por isso nem se despede de mim, este cara despossuído de poderes, somente me dá as costas e acelera em direção ao Santuário de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Não é dia de novena, e há pouca gente por lá. Apressada, avança pela passarela entre a igrejinha e o muro do Cemitério Luterano, o chão forrado de butiás e formigueiros.
É, também, o meu caminho, uma coincidência de percurso, mas sinto que ela vê em mim um perseguidor. Acelera ainda mais. Dois homens bebem água na porta lateral do santuário e a olham grosseiramente. Ela não pede fogo a eles, o cigarro apagado entre as pedras de seus anéis. Um dos homens assobia, ela ensaia uma corrida, mas, de repente, estaca. Está diante da Capela das Velas, com sua aura de gruta mística, seus castiçais cobertos pela cera de mil promessas, dívidas e agradecimentos.
Quando alcanço a capela, já a vejo lá dentro, debruçada sobre uma das velas, seu cigarro chupando a chama alheia, o lume aceso em favor de um doente desconhecido, em retribuição a uma graça, em memória de uma alma, um morto qualquer. Danem-se. O fogo salta do pavio ao fumo e vai com sua sequestradora, furtado, alegre, livre da diplomacia dos santos. Prometeu não faria melhor.
A mulher sai da capela e sopra para o céu uma nova nuvem. Agora sim pode desacelerar, e sorri mais uma vez, ao me ver passando. Admito que me equivoquei: não há nada de errado em suas roupas, na verdade ela está nua e relaxada ao sair desta gruta bruxuleante, e até me acena um tchau, até logo, com um sotaque que não sou mais capaz de definir, mas que um dia pode ter sido meu.
Só sei que gosto de vê-la com o fogo.
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