Quando passo com minhas filhas pela Padre Antônio, nos fascina o grande trampolim azul do Colégio Estadual. Bem, na verdade, não se trata de um trampolim, não tecnicamente, pois nele não há pranchas. É mais uma plataforma de concreto, talvez da altura de um segundo andar. Sobe-se até ela por duas escadinhas verticais. Aliás, falo em subir, mas jamais vi gente lá em cima. Também nunca vimos a piscina atrás do muro escolar, nem ouvimos o barulho de suas águas. Somente supomos que a piscina existe, e essa presunção já nos basta para que, nas tardes de mormaço, desejemos saltar dentro dela.
Na mesma rua, bate ponto um homem de muletas, de meia-idade. Ele me lembra um ferido de guerra, daqueles que, no cinema, marcham enfileirados ao fim das batalhas perdidas. Um de seus pés nunca toca o chão, a gaze suja de um laranja ferruginoso. Não sei o que faz na Padre Antônio. Não vende nada, não guarda carros, não pede esmolas. Às vezes, fantasio que seja o guardião do muro que nos separa da plataforma de saltos.
Quando passamos por ali, aquele homem nunca fala conosco, nem nos olha. Por outro lado, quando volto da escola, sozinho, faz questão de puxar conversa comigo, o que, de início, me incomodava. Depois, vendo que ele vivia machucado, coberto de escoriações, fui relaxando, me sentindo mais seguro. Era um sentimento egoísta, do qual me envergonho, mas se aquele cara não estivesse literalmente partido em pedaços, ninguém se disporia a falar com ele.
Nunca vimos a piscina atrás do muro escolar, nem ouvimos o barulho de suas águas. Somente supomos que ela existe
O homem me pergunta sobre o calor e, em seguida, balança o corpo quebrado em direção ao muro atrás de si, como se o quisesse transpor em sonhos: um mergulho agora, já pensou? Sorrio convencionalmente e, em geral, nossa interação termina aí. Há tardes, no entanto, em que o homem quer falar mais, e sou forçado a parar.
Seu tema é a plataforma. Não sei por que razão a estrutura o obceca. Diz que o essencial, em relação a trampolins, é saber que, uma vez sobre eles, só nos restarão duas saídas: voltar ao nível do chão, retomando as escadas, num recuo triste e vexatório; ou despencar de suas bordas de concreto, fazendo de nossa queda um salto e conferindo a ela, se possível, algum valor maior, um significado moral ou estético travestido de diversão, graça ou esporte.
É claro que ele não fala nesses termos, mas creio ser este o sentido de suas elucubrações. Para testá-lo, certa vez afirmei existir uma terceira via: pode-se simplesmente ficar lá em cima. Rindo dessa hipótese, que julgou tola, o homem defendeu o óbvio: não há no mundo quem seja capaz de se manter no alto para sempre. E, de modo a provar seu ponto de vista, me apontou o trampolim vazio: os atletas que, até hoje, já o escalaram, onde estão?
Me fechei num silêncio lógico, e ele aproveitou para encaixar uma história. Contou que no fim do ano viu a plataforma cheia de estudantes alegres, de uniforme azul. Saltavam vestidos, porém descalços, e aos gritos, buscando uma água que só se anunciava fresca e real enquanto ruído, explosão, promessa de prazer e refrigério.
Celebravam a formatura, sugeri. Não exatamente, me disse o homem de muletas. Celebravam o fato de que nunca mais voltariam a se ver. Pelo menos não naquelas alturas.
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