O casal era um conflito móvel. Avançava pela Ivo Leão, margeando o Cemitério Luterano. A mulher vestia jeans, calça e jaqueta. Do pescoço para cima, era uma explosão ruiva, um coquetel molotov. Apagado, o homem lembrava mais um monte de cinzas. A cabeça num capuz, as mãos nos bolsos da japona de náilon. Não porque sentisse frio, mas porque embolsar as mãos reforçava, nele, um desejo corporal de mudez.
A mulher gritava. De onde ele estava vindo, o que fazia nesta parte da cidade? Ele não reagia, e seu silêncio era inflamável, alimentava o fogo que escorria sobre ela. Para não se consumir, a moça bateu nos braços dele, a mão aberta, de unhas azuis. Não conheço verbo exato para o que ela fazia, mas sei que ordenava e implorava ao mesmo tempo. Queria que ele se desculpasse, ou se defendesse.
Nada. Ela o cobriu de tapas, agora no peito. Ele manteve embainhadas as mãos, e seguiu rumo à ponte sobre a Nicolau Maeder. A mulher se descontrolou, previu um incêndio interno, vocês sabem, de todos os nossos combustíveis, a cólera é o mais corrosivo. Por isso correu para o asfalto, para queimar energia, fazendo voar os quero-queros ao redor do Couto Pereira.
De todos os nossos combustíveis, a cólera é o mais corrosivo
Piorou. O alarido dos pássaros a enfureceu, e ela voltou à calçada pronta para tudo. Acertou um soco na orelha do encapuzado. Mas o homem ainda não quis desembolsar as mãos, somente se curvou um pouco. Novos socos vieram, todos na orelha. E ele só apertou o passo. Não queria público nem papo.
Ela acelerou também. Subiram a escada da ponte saltando degraus. A mulher ameaçou pular de lá, sobre a correnteza de carros, ou então empurrá-lo, é você ou eu, gritou, é hoje, esta ponte aqui desde sempre, só à espera da minha decisão. O cara sabia que era um blefe, mas não quis arriscar, melhor cruzar logo, na outra margem da trincheira ele daria um jeito.
Chorando, ela deu um pique e o ultrapassou. Lançou-se escada abaixo, em direção à João Gualberto. Quase caiu, recompôs-se, olhou para trás, voltou a exigir desculpas. Ele parou no meio da descida e, se sentindo superior, mais alto que ela, num palanque de masculinidade, decidiu que era hora de falar, quem é você pra me dar ordens?
A pergunta paralisou a moça, que respirou fundo e disse: “Juliana é que não sou”. E a simples menção àquela terceira personagem bastou para nocautear o macho, que tornou a ser um piá derrotado. Fortalecida, ela subiu a escadaria, puxou-o para baixo, estapeou-o, me respeite, fale comigo, tire as mãos do bolso, o que você está escondendo aí? E desceu o zíper da japona dele.
O que saiu de lá, num parto espetacular, foi um filhote de vira-latas, olhos fechados, trêmulo, do tamanho de um sapatinho de bebê. Ela berrou, credo, de onde você tirou esse pulguento? Achei na rua, ele resmungou, e os dois se fuzilaram com perguntas e respostas duras: é mentira, quem te deu esse bicho, você nunca gostou de cachorro, mentira, pra quem você ia dar esse guapeca, pra ninguém, pois agora é meu, me dá.
E ele deu. Ela pegou o filhote no colo, acarinhou, sorriu para o namorado, que sorriu para ela. E quando se sentaram, juntos, no meio-fio da rua sem saída, já eram uma família.
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