Bem em frente à redação da Gazeta do Povo, há uma portinha em um prédio antigo com os dizeres “Sociedade Portuguesa 1.º de Dezembro”. Não sei exatamente o que é, quem são, nunca sequer entrei lá, mas há algum tempo esse lugar se tornou uma presença constante na minha vida. E um mistério que eu não consigo ou não quero responder.
Volta e meia, saio à rua para clarear a cabeça durante o trabalho. Encaro a Rua Pedro Ivo e é sempre a mesma feiura, a mesma brutalidade urbana, com chuva ou com sol. Volta e meia, porém, da janela da Sociedade Portuguesa sai o som de uma flauta celta, do acordeom de uma dança polonesa, dos berros de um guerreiro japonês – às vezes, dá para ouvir até um fado.
Nesse momento, o cérebro se confunde: por que este som? Por que este lugar? Parece que dois universos, aquele dos motores de biarticulados, usuários de crack e cheiro de esgoto e aquele do sonho, da fantasia e da paz, se chocam. A sensação é de estar bem no meio de uma dobra no espaço e no tempo, um pé no universo coletivo, outro em um universo particular de outra pessoa que, sem nenhuma razão, se tornou tangível.
Depois, me dou conta de que esses dois mundos são perfeitamente compatíveis, que são parte de um todo. Que viver em uma cidade é estar no meio do conflito entre o óbvio e o improvável, o barulho e a música, a realidade e o sonho. Sem dizer nada, agradeço em pensamento aos portugueses por esse momento singelo e peculiar e sigo meu rumo.
A cara de pau de se meter onde não é chamado sem motivo é pré-condição para qualquer boa viagem
Há anos eu reparo nisso, mas nunca me deu coragem de bater na porta e perguntar: quem são vocês, portugueses cosmopolitas que ousam fazer arte na hora do rush? Posso me juntar à trupe? Acho que somente no dia em que eu deixar de morar em Curitiba terei capacidade de levar esse plano adiante. Porque eu só sei agir assim quando sou turista.
Acredito que todo ser humano tem um interruptor na nuca que é automaticamente acionado sempre que ele sai da cidade onde mora. Quando está na posição “turista”, ele se sente na condição de explorar tudo, tentar tudo, entrar em qualquer lugar só porque a porta está aberta. A cara de pau de se meter onde não é chamado sem motivo é pré-condição para qualquer boa viagem.
Mas, quando o interruptor está na posição “morador”, todo caminho exige um fim. O que dizer para os portugueses quando bater na porta? Como explicar que eu estou usando meu tempo para resolver esse mistério pessoal se eu tenho de terminar minha coluna, fazer compras no mercado ou tomar uma cerveja no mesmo bar de sempre com os mesmos amigos de sempre?
Talvez essa condição limitadora tenha seu lado positivo. Parte do fascínio exercido pelo bandolim no meio do caos da Pedro Ivo vem do fato de que eu não sei quem está tocando, como ou por que ele está sendo tocado. Se soubesse, seria apenas música e barulho em um mesmo espaço, sem choque, sem sonho, sem dobras no tempo e no espaço. Bem na verdade, prefiro conviver com esse mistério a resolvê-lo.
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