| Foto: Felipe Lima

Em suas memórias, John Updike faz uma descrição minuciosa de um momento em que se sentiu feliz. Veja bem, ele não afirma que é feliz, que desfruta de bem-estar contínuo e contentamento ininterrupto, mas registra um instante de felicidade, uma brecha, um flagrante. Foi assim:

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“E outra manhã, uma manhã de domingo, por volta das nove, voltando para casa pela entrada de automóvel com roupa de missa, e tendo pegado da caixa de correio o [jornal] Globe de domingo, experimentei uma felicidade tão intensa que tentei decompô-la em seus componentes.”

Ou seja, a felicidade surgiu em um dado momento (por volta das 9 horas) quando ele, ao voltar da missa, recolheu o jornal. Foi intensa o suficiente para que o escritor se desse conta dela. Aqui abro parênteses: dar-se conta da felicidade, quando ela é duradoura e nasce da rotina, é tarefa para a qual não somos treinados. “Era feliz e não sabia” – frase certeira que usamos quando a aparente felicidade acabou e aí, só aí, percebemos que ela existia. No caso de Updike houve um momento de iluminação.

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Quem passa fome é infeliz. Por outro lado, quem tem comida à vontade não é necessariamente feliz

Updike, chegando aos 60 anos, registra todas as possíveis causas daquela onda de felicidade que tomou conta dele: a agitação do período de Natal tinha acabado, ele e a esposa tinham feito amor “com resultados bastante satisfatórios, o que, com esta minha idade, é motivo para congratular-me”, o dia estava agradável (frio e um pouco de neve), ele terminara um trabalho chato, estava animado para começar outro trabalho, iria receber a visita da filha e dos netos. A sétima e última explicação que ele encontra para aquele contentamento tão palpável foi o momento em si, o momento perfeito de um dia comum. Updike, nós todos, aqui temos algo em comum. O momento perfeito era o desjejum sem pressa, na proteção de um ambiente amigável (a cozinha, talvez a copa), com um jornal que traz algo familiar e adorado (a tirinha do Homem-Aranha, que ele acompanhava) e o café da manhã (“granola, amêndoa, mel e suco de laranja”).

Refazendo os passos de Updike, que decompôs a felicidade em seus elementos, diria que, em primeiro lugar, ter alimento é fundamental para ser feliz. Quem passa fome é infeliz. Por outro lado, quem tem comida à vontade não é necessariamente feliz. Como tudo o mais que é fundamental para a sobrevivência – o ar, a água, a liberdade de ir e vir –, a comida é pouco valorizada quando existe em abundância. Em segundo lugar, um café da manhã tranquilo, seja pão com manteiga na padaria ou bufê em um hotel de luxo, dispara a sensação de contentamento, como um aviso: “o dia começa bem, com a passagem entre o sono e a vigília acontecendo de forma branda e morna”. Mas a maioria de nós sente que precisa fugir logo cedo da introspecção e se conectar ao mundo lá fora. Aí entra o jornal, que faz a ponte entre a intimidade do café da manhã e a realidade. Ainda não é a realidade que entra no nosso dia. É uma versão filtrada dela, intermediada pelo papel, pela tevê, pelo rádio. Quando os jornais não tiverem mais edições em papel, eu, que gosto de folhear o jornal enquanto tomo café, farei o quê? Acho que não estou preparada para colocar um dispositivo eletrônico na minha frente desde as primeiras horas do dia sabendo que continuarei conectada até a hora de dormir. Veremos.

Updike se sentia bem (como mostram as referências à família, ao trabalho, ao sexo, à prática religiosa) e então um momento singelo (alimento, abrigo, uma conexão pacífica com o mundo) provocou o êxtase. A felicidade se tornou tão intensa que ele sentiu necessidade de estudá-la e ironicamente questionou a conclusão mais óbvia a que podia chegar: “Pode a felicidade ser simplesmente uma questão de suco de laranja?” Claro que ele sabia a resposta.

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