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Marleth Silva

A importância de ficar de balde

Estaciono o carro na rua e logo aparece o guardador. Trabalha para o restaurante em frente e está uniformizado. Quando se aproxima e começa a falar, noto que há algo estranho. Depois de me pedir umas moedas, sua primeira frase é "quem pensa não casa". Posso até concordar com ele, mas não entendo o que aquela filosofia popular tem a ver com o que se passa ali, naquela rua do Bi­­gorrilho. Quando volto, minutos depois, o rapaz recomeça. Sim­­pático, fala rápido e me brinda com algumas frases sem relação entre si. De duas, uma: ou é artista ou é maluco. Tente o leitor falar, rapidamente, cinco frases em sequência que não tenham nenhuma relação entre si! Não é fácil. Pois o guardador fazia isso o tempo todo.

Moedinhas na mão, ele me agradece e se despede. Lá vem mais uma pérola: "Não fique de varde. Torça por mim." Nem consegui torcer pelo ra­­paz porque não parei de pensar no "de varde". Ô palavrinha esquisita que ele desencavou para finalizar a conversa louca, do tipo que só o Cha­­peleiro Maluco e a Lebre são capazes de manter (quando li Alice no País das Maravilhas pa­­ra meus filhos, pulei frases do diálogo porque nenhum de nós entendia nada).

Pois o meu Chapeleiro Maluco e simpático não quer que eu fique de varde. Sei que de varde é sinônimo de ficar à toa, mas a expressão soa tão estranha, perdida no tempo, que vou ao dicionário. En­­contro no novíssimo Aurélio a palavra debalde, advérbio que significa "inutilmente, em vão". Volto a "balde" e está lá: inútil, sem valor. Eu achava que "de balde" era expressão restrita ao interior do Paraná, onde ouvi muita gente reclamar do marido ou da vizinha que vivia "de varde" – alguém consegue imaginar um carioca falando "estou divardiiii" com aquele sotaque de novela das oito? Não, balde é palavra bem-nascida, mas que ganhou corruptela (virou varde) e está sendo esquecida. Assim como convescote, que deve ter sido ou­­vida pela última vez quando a Zilka Salaberry ainda era a Dona Benta e convidava o Visconde de Sabugosa para festas no sítio. Ou furdúncio, que aqui na re­­dação da Gazeta ainda tem uns e outros que usam, talvez para intimidar os novatos, que devem concluir que não ouviram direito o que foi dito e por isso nem se dão ao trabalho de ir ao dicionário.

Aliás, ir ao dicionário é um hábito demodê (já que estamos falando de palavras do tempo do êpa...). Hoje, vai-se ao Google. O Google sempre tem resposta. Às vezes, dezenas de respostas, o que exige certo empenho para que não se embarque em informação furada. No Google tem "de varde".

O meu Chapeleiro Maluco tem tempo para filosofar ("Quem pensa não casa") porque fica muito tempo de balde. Entre um motorista e outro que aborda, entrega-se aos pensamentos desconexos e acaba chegando a conclusões curiosas (outra que ele me disse: "Já que a chuva está molhando, vou fingir que estou aqui por que quero"). Pessoas muito ocupadas com tarefas práticas sufocam a imaginação. Ficar um pouco de balde não faz mal pra ninguém.

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