O filme A Suprema Felicidade, de Arnaldo Jabor, em cartaz Brasil afora, usa o ponto de vista de um menino para retratar uma família e o Rio de Janeiro dos anos 40 e 50. É um filme de tom saudosista, uma recuperação de um mundo que já não existe e que o cineasta embrulha em um clima de sonho, com carnavais que surgem do nada no meio da rua, bordéis de mulheres loucas e uma Marilyn Monroe que se gaba de ser virgem. Se você acha que essa descrição lembra Fellini, eu concordo com você.
Logo nos primeiros minutos, uma cena mostra como os pais do garoto se conheceram. Jovens, os dois declamaram um para o outro uma frase do filme O Morro dos Ventos Uivantes (deve ser o de 1939, com Laurence Olivier) em que Catherine diz a Heathcliff: "Eu nunca vou mudar". Os dois jovens apaixonados do filme do Jabor também repetem um para o outro: "Eu nunca vou mudar".
É claro que eles mudam. Na verdade, ao longo da vida em comum, revelam-se suas fraquezas e os dois mudam porque se desiludem. Não se tornam melhores ou piores, mas deixam de ser os jovens confiantes e passam a ser adultos que tentam, como podem, viver com suas frustrações.
Sem tentar desvendar as intenções do diretor (afinal, o que conta é o que cada um de nós enxerga na obra, não é?), parece que A Suprema Felicidade parte de um passado saudoso para mostrar o que o tempo faz com as pessoas. Ou talvez, para mostrar o que a memória faz com as pessoas. O filme termina com o personagem mais vivaz e equilibrado do filme, o avô vivido por Marco Nanini (em uma atuação maravilhosa), perdendo a memória, no que parecem ser as primeiras manifestações do Alzheimer.
Jovens que se acham tão perfeitos que prometem nunca mudar.
Adultos tentando entender o que está dando errado.
Idosos que vivem em um mundo de memórias memórias que os guiam, mas que também vão desaparecendo.
É o resumo da história do ser humano e uma bela estrutura para um filme, não é? E, ainda que eu não coloque A Suprema Felicidade entre os meus favoritos, reconheço que Arnaldo Jabor costura tudo muito bem e põe mais fogo em uma fogueira que queima dentro do meu cérebro: o passado que carregamos e que faz de nós o que somos, não se torna, a certa altura, um peso tão grande que nos impede de valorizar o presente e sonhar com o futuro?
O que faz dos muito jovens pessoas especiais no ponto de vista deles próprios e no dos mais velhos é o fato de poderem tudo, no sentido de que ainda irão fazer tudo e terem, por isso, muitas possibilidades. "Você tem a vida pela frente" é uma bênção e também o resumo de como a civilização enxerga a juventude e a maturidade. "Esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei" é o mantra dos maduros que olham para trás.
Me pergunto se o nosso cérebro é como um copo com capacidade limitada para receber substâncias. Depois de 30, 40 ou 50 anos (dependendo da pessoa) as memórias ocupam tanto espaço que o cérebro passa a funcionar em função delas e a ignorar boa parte do mundo à sua volta porque não tem mais capacidade para absorver informações e emoções? Duvido. Só coloco a pergunta como provocação.
Os idosos "vivos" são os idosos curiosos, que ainda querem ver e saber e sentir. Podem estar com a cachola carregada de lembranças, mas querem mais. O saudosismo produz coisas lindas, como esse A Felicidade Suprema. O saudosismo também é uma forma de resistência à passagem do tempo, que tira tudo de nós. E o saudosismo também é uma armadilha, que agarra pela perna e não solta mais quem fica muito tempo parado em cima dele.