O jornalista Geneton Moraes Neto, que morreu em agosto deste ano, perseguia Carlos Drummond de Andrade, tentando arrancar dele entrevistas. Mais tarde Geneton escreveria: “Eu me penitencio. É óbvio que um repórter cometeria um pecado se pegasse o telefone para tentar extrair, a golpes de gravador, um punhado de palavras de um poeta que já tinha oferecido ao Brasil versos como os de América:
‘Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.
O rosto denuncia certa experiência.
A mão escreveu tanto – e não sabe contar !’”
Geneton cometeu o pecado quando descobriu uma fraqueza da sua vítima. Drummond falava mais ao telefone, se abria de uma forma que não conseguia repetir quando estava frente a frente com o interlocutor. Foi assim que o repórter fez a tão sonhada entrevista. Foram 76 perguntas respondidas e gravadas. Poucos dias depois, a única filha de Drummond morreu e o poeta, mergulhado na melancolia, seguiu-a no dia 31 de outubro. As duas mortes aconteceram no prazo de duas semanas após a entrevista.
Imagine o que Drummond diria se visse o que aconteceu com o Rio Doce e com a paisagem de Mariana
Uma frase de Drummond ao telefone foi: ”Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a 20 anos – e eu já estarei no cemitério São João Batista – ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”. Isso foi dito em 1987 – portanto, há 29 anos. “Grande poeta e péssimo profeta”, resumiu o jornalista.
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Geneton não foi o único a entrevistar Drummond. Lembro-me de Leda Nagle conversando demoradamente com ele no Jornal Hoje em 1981 e em 1984. Assisti às duas, encantada pelo sotaque mineiro, pelos raciocínios que eram os mesmos que estavam nos poemas e crônicas. Recomendo que o leitor procure o arquivo da primeira entrevista, que está disponível na internet. A segunda, eu não encontrei. Teria a Globo perdido o arquivo?
Na entrevista a Leda Nagle, Drummond conta que de vez em quando “descia o pau na [mineradora] Vale do Rio Doce” por causa dos estragos que ela fazia na paisagem de Minas: “Não adianta nada, mas eu lavo a alma”. Imagine você o que ele diria se visse o que aconteceu com o Rio Doce e com a paisagem de Mariana, tomados pelos resíduos de minérios de ferro da mesma Vale.
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Mais tarde, Geneton entrevistou a bibliotecária Lygia Fernandes, com quem Drummond manteve um longo relacionamento. O poeta e a bibliotecária – seria um casamento perfeito. Mas o poeta já era casado desde a juventude e assim permaneceu. Foi de Lygia a constatação de que ela não era a única “namorada” de Drummond. Até se arriscou a fazer uma conta: teriam sido 83. De onde veio esse número? A contabilidade amorosa do poeta só pode ter sido feita a partir do que ele mesmo relatava. Talvez Drummond fosse como uma Sherazade, que contava histórias para adormecer o amante. Se eram verdadeiras ou não, que importância tem?
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Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.