Minha amiga Glenda conta a história de um guarda do Muro de Berlim que ela entrevistou anos atrás. Frank G. nasceu sob o regime comunista e comportava-se como um bom cidadão de seu país. Teve de servir o Exército, teve de vigiar a área do muro quando foi escalado para a tarefa. Não tinha vocação para aquilo. Torcia para nunca se deparar com um compatriota em fuga. Mas uma noite isso aconteceu e ele cumpriu o protocolo: disparou o sinalizador para alertar os demais guardas, gritou que iria atirar, disparou sua Kalashnikov para o alto e, depois, na direção do fugitivo. Tentou errar o alvo. Acertou no ombro. O rapaz sobreviveu, mas foi pego pela polícia da Alemanha Oriental.

CARREGANDO :)

Anos depois, caiu o muro e a Justiça da Alemanha unificada processou e julgou Frank por aquele tiro. Ele foi condenado.

Glenda ficou impressionada com o papel que coube a Frank G., o de marionete da história. Sua vida sempre sendo levada na direção que a história tomava e não na direção em que sua natureza mais verdadeira o conduzia.

Publicidade

É um pensamento desconfortável: somos fruto do tempo e do lugar em que vivemos. Talvez mais que frutos, escravos, já que nossos pensamentos são influenciados pela mentalidade maior, coletiva, pelo Zeitgeist, aquela palavra alemã que designa o clima intelectual e cultural do mundo numa certa época. De tão mergulhados que estamos neste Zeitgest, ele nos parece natural. Só registramos parcialmente sua existência.

Meus colegas Paulo e Ricardo comentavam outro dia o impacto que o filme Terra Estrangeira teve sobre eles em 1995. Lembrei que o clima derrotista da obra me fez mal. O filme conta a história de um jovem brasileiro cuja mãe morre de preocupação e tristeza quando suas poucas economias são confiscadas pelo governo Collor. Sozinho e sem dinheiro em um país que oferecia mais desgostos que esperanças, Paco (interpretado por Fernando Alves Pinto) emigra para Portugal. Para quem hoje está na faixa dos 40 anos, aquilo é um retrato da nossa geração.

Durante os anos 90, os brasileiros debandaram para o Japão, para a Europa e para os Estados Unidos em busca de subempregos e de estabilidade. Aonde você ia, encontrava compatriotas atendendo nos bares, cuidando de crianças, fazendo faxina. Aquelas pessoas já tinham crescido sem perspectivas otimistas. A recessão dos anos 80 fizera até engenheiro virar suco! Se nem estudar resolvia, só restava o aeroporto.

Frank G., os Pacos dos anos 90, os engenheiros que nos anos 80 ficaram sem trabalho e tiveram de montar um negócio para sobreviver, são todos exemplos de quanto de nossa trajetória pessoal nos escapa ao controle. Nossos esforços são recompensados, sim, mas não é uma correlação perfeita de causa e efeito. Admitir isso não é procurar desculpa para os preguiçosos; é fazer justiça com tantos que se esforçam dignamente. Assim como o alemão fez o que era correto naquele ambiente em que vivia e foi punido pela história, gerações de brasileiros se esforçaram muito para avançar poucos passos. São gerações sacrificadas, umas mais, outras menos.

Lembro um exemplo oposto ao do Frank, do Paco e do Odil Garcez Filho (o tal engenheiro que abriu uma lojinha de suco em São Paulo). É o Steve Jobs. Quem lê a biografia dele percebe que Steve Jobs era fruto de seu ambiente: um garoto que cresceu enquanto o Vale do Silício florescia, que foi jovem na época da contracultura (o que moldou totalmente as crenças que levou para a Apple) e que se tornou um empresário da tecnologia no momento em que o mundo passou a girar em torno de mídias digitais. Dá para dizer que Jobs não é produto daquele meio, mas sim um dos homens que fizeram aquele meio ser o que é? O leitor que chegue a sua conclusão. Eu acho que não. Tivesse nascido Steve Jobs no Brasil dos anos 80, ele teria sido um engenheiro que virou suco.

Publicidade

Dê sua opinião

O que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.