| Foto: Felipe Lima

Quando li sobre Kafka e a boneca, duvidei. O episódio é meigo demais. De Franz Kafka não se espera meiguice. Os textos dele inspiraram um adjetivo (“kafkiano”) que já foi aplicado a tudo que é esquisito, surreal, claustrofóbico. Em geral, coisas que não merecem ser relacionadas com a obra de Kafka por serem muito inferiores.

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Revirei a internet, chequei biografias e a boneca estava lá. Então, vamos aos fatos, conforme eles vêm sendo contados há 92 anos.

Kafka era um homem de quase 40 e estava realizando um grande sonho: sair de Praga e viver em Berlim. Durante muito tempo ele falou de Berlim como um provinciano fala da metrópole que admira. Essa idealização da capital alemã aparece em dezenas de cartas que escreveu para a então namorada Felice Bauer. Finalmente, em 1923, mudou-se pra Berlim, instalou-se em uma pensão junto com a namorada, Dora. Mas Berlim não estava no seu melhor momento. A vida na Alemanha entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial era tão ruim que Kafka evitava circular pela cidade com que tanto sonhara. Não suportava ler os jornais porque as notícias eram péssimas. Não ia ao centro, à Potsdamer Platz, porque ela estava lotada de mendigos. Os judeus, como ele, eram constantemente ameaçados, xingados.

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Um dia, ele e a namorada passeavam pelo bairro onde viviam, Steglitz. Ao cruzarem um parque, viram uma menina chorando. Kafka quis saber o que tinha acontecido. Ela tinha perdido sua única boneca. Para consolá-la, Kafka disse que não se preocupasse porque a boneca estava apenas viajando. “Como você sabe?” – teria questionado a menina. E ele: “Ela me escreveu uma carta”. “Cadê a carta?” – perguntou a menina. Estava em casa, mas ele poderia trazê-la no dia seguinte.

Nunca saberemos quais eram as palavras escritas naquelas cartas, mas somos sempre tentados a imaginar

Comprometido com sua mentira, Kafka escreveu uma cartinha e levou-a ao parque no dia seguinte, onde a menina o esperava. A boneca se explicava por ter decidido partir em viagem, por trocar sua amada dona por uma aventura. A correspondência teria se prolongado por três semanas e, segundo a namorada que o via se trancar em casa para escrevê-las, Kafka punha tanto esforço nas mensagens da boneca viajante quanto dedicava à sua literatura.

Decidir um destino final para a boneca foi uma tarefa especialmente dura. Ele teve uma ideia, que transformou em carta e levou para a garotinha: em suas andanças, a boneca se apaixonara e agora estava muito envolvida com os preparativos para o casamento. Por isso se desculpava, mas não poderia escrever mais. Sua dona que se tranquilizasse porque ela estava muito bem e vivendo sua vida. Que é o que a garotinha deveria fazer também.

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Se Kafka fosse um escritor mais vaidoso ou menos desiludido com a carreira literária, teria deixado cópias daquelas cartinhas para lermos agora. Só sabemos delas porque Dora contou o episódio a duas pessoas. Pouco tempo depois das cartas de Steglitz, a tuberculose de Kafka piorou, ele voltou para a Tchecoslováquia e morreu.

Há muitos aspectos extraordinários nesta história, a começar pelo autor de obras densas como A Metamorfose e O Processo colocar-se no lugar de uma boneca para escrever a uma criança de 6 ou 7 anos. Tem a generosidade e a doçura envolvidas na tarefa; as artimanhas que se usa para lidar com as perdas, com o luto, com as mudanças. E tem as palavras escritas naquelas cartas, que nunca saberemos quais eram, mas somos sempre tentados a imaginar. O catalão Jordi Sierra i Fabre fez um livro em que recria as cartas da boneca viajante; Paul Auster reconta o episódio em um conto; Moacyr Scliar disse que pensou em escrever as cartas, mas, ao saber do livro de Sierra i Fabre, desistiu. Este é outro aspecto extraordinário da história da boneca viajante: ela não é completa e por isso nos provoca a contá-la, recontá-la, completá-la.