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Eu vi essa cena e você já deve ter presenciado algo parecido. Em uma manhã de sábado tive um compromisso logo cedo, no Centro. Eram quase nove da manhã e quando chegava ao meu destino notei um acidente de trânsito, com o automóvel parado sobre a calçada. Me aproximei a tempo de ver o policial tentar tirar o motorista de trás do volante. Estava são e salvo, mas bêbado como um gambá. Nem entendia o que o policial dizia. Embaixo do carro, a lixeira que ele atropelou. Caída na calçada, a placa de sinalização que ele esmagou. Bêbado, às 8h30 da manhã, aquele motorista saiu dirigindo seu automóvel. Se tivesse atropelado um de nós, transeuntes que circulávamos pelo Centro, teria deixado um morto na calçada e não a lata de lixo retorcida. E teria sido condenado a uma pena dura por isso?

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A julgar pelo caso escabroso ocorrido recentemente em São Paulo, o curitibano bêbado se safaria. Recordemos: em São Paulo, um pintor de paredes de 21 anos, David Santos Souza, teve o braço arrancado durante um atropelamento. O motorista, o estudante de Psicologia Alex Siwek, de 22 anos, fugiu sem prestar assistência. Ao notar um braço preso no vidro quebrado, empenhou-se em se livrar dele. Encontrou um córrego, desceu do carro, jogou o braço na água e então voltou para casa. Mais tarde procurou a polícia para se entregar. Alertados pelos médicos que atenderam David de que o braço poderia ser reimplantado, os policiais tentaram resgatá-lo, mas não encontraram. A correnteza deve ter levado ou Siwek errou a localização do local do despejo. Afinal, ele estava alcoolizado. David ficou sem braço.

No fim de agosto, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou a acusação de tentativa de homicídio com dolo eventual, como pedia a promotoria. Siwek não irá a júri popular e responderá pelo crime de lesão corporal com base na lei de trânsito, que prevê pena de reclusão de 6 meses a 2 anos.

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A justificativa é de que em crimes de trânsito "a regra é a ocorrência de culpa (negligência, imprudência ou imperícia), sendo o dolo (direto ou eventual) aceito em situações excepcionalíssimas".

Tem razão, o juiz. Os crimes de trânsito são acidentais. Salvo raras exceções, o motorista não sai de casa com o plano de jogar seu carro contra outro veículo ou contra um pedestre para matar. Mas na maioria dos casos fica claro que quem causou o acidente ignorou o bom senso, descumpriu regras básicas, agiu irresponsavelmente. Siwek, por exemplo, atropelou o ciclista às 5h30 da manhã, quando voltava para casa depois de passar a noite em uma casa noturna, onde havia consumido três doses de vodca. "A ingestão de álcool interfere nos reflexos e na coordenação motora, além de causar dificuldade de concentração do indivíduo". Tirei a frase de um texto do Detran, mas é possível que uma pessoa que é portadora de carteira de habilitação não saiba disso? E uma noite em claro, alguém duvida de que ela afete o desempenho de quem está ao volante?

Os motoristas sabem que correm riscos ao beber álcool e dirigir, mas muitos o fazem seguidamente. São irresponsáveis, portanto. Mas agir de forma irresponsável não é o mesmo que agir com intenção de matar (dolo). Este é o terreno pantanoso que envolve os casos de acidentes de trânsito com vítimas. Os juízes que seguem a tal regra citada devem se sentir seguros de sua decisão, respaldados por uma lógica, por uma regra. Mas não ajudam em nada a sociedade, que continua desprotegida dos irresponsáveis e é desestimulada a levar a sério a proibição do "se beber, não dirija".

Crimes de trânsito deixam um rastro facilmente reconhecível: a frustração das famílias das vítimas. Ninguém é culpado pelo acidente ou punido com o rigor proporcional ao estrago feito. As regras existem, mas as consequências dos atos dos violadores são sempre "acidentais" por isso vale a pena correr o risco de desrespeitá-las. Tudo isso respaldado por um discurso muito estruturado e sofisticado que vem lá das bandas do Judiciário.

Há um abismo entre eles e a sociedade e não há ponte sobre esse abismo.

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