No filme Frost Nixon, exibido em Curitiba há pouco tempo, há uma cena que mostra o ex-presidente americano telefonando no meio da noite para o jornalista que iria entrevistá-lo, aparentemente com o objetivo de intimidá-lo. Nixon diz ter tomado "uma ou duas doses de uísque", mas não parece bêbado. Desanda a falar sobre o desdém que ele, um americano de origem humilde, recebeu dos colegas de famílias tradicionais na universidade. O olhar de superioridade da elite americana teria perseguido Nixon, segundo a percepção dele, mesmo depois de eleito para o cargo mais importante do país. O ressentimento do ex-presidente é tão forte que assusta seu interlocutor, que fica mudo do outro lado da linha.
Assusta a plateia também. No país das oportunidades, a elite (leia-se famílias ricas e tradicionais) desdenha um homem que chega à Presidência da República porque ele nasceu na base da pirâmide social? É incoerente, mas se a literatura e algumas biografias estiverem dizendo a verdade, isso realmente acontece por lá.
Todo grupo social tende a ser mais amigável com os seus pares, até por uma questão de identificação, de compartilhamento dos mesmos códigos de comportamento e experiências. Isso vale tanto para os que nascem milionários quanto para os que nascem na favela. No Brasil, se há algo que enfraquece as fronteiras entre os grupos sociais é o fato de nossas elites serem extremamente instáveis. Principalmente em termos econômicos. A prosperidade não envelhece bem por essas bandas. Avôs riquíssimos, se viverem bastante, provavelmente verão seus netos ou bisnetos desembarcarem na classe média. Famílias tradicionais preservam a autoimportância, mas não a exuberância da conta bancária. Claro que quem nasceu dentro de um grupo privilegiado sempre vai contar com um empurrão extra dos "bons contatos" que herdará mais um motivo para os que crescem a partir de uma origem humilde e, portanto, sem os tais contatos, serem mais valorizados. Sendo assim tão inconsistentes, nossas elites não têm nem justificativa para serem fechadas como as americanas.
Em outras categorias de elite, se vê a mesma transitoriedade. Ainda que haja alguns clãs que tentam se perpetuar na política, eles tendem a ter vida curta. Os Sarney vieram literalmente do nada (o sobrenome foi inventado pelo pai do atual senador) e, se o povo tiver juízo, não devem ir muito longe. Duas gerações já são mais que suficientes para maltratar o país. E elites intelectuais? Vale a regra: avô intelectual, filho bem instruído, neto distraído. Há exceções, claro. Ocorre-me o escritor Rodrigo Melo Franco e seu filho, o cineasta Joaquim Pedro; o casal Walter e Lucia Moreira Sales e seus filhos, os cineastas Walter e João; Sérgio e Chico Buarque de Hollanda.
Em um mundo ideal, famílias que conseguem atingir um nível alto de prosperidade econômica ou desenvolvimento intelectual fariam disso um patrimônio permanente sem cair na armadilha de se considerarem eleitos pelos deuses para serem especiais. O "ser especial" azeda o caldo. Na versão brasileira de elitismo, ao se ver assim, o sujeito passa a ser relapso e preguiçoso: todas as benesses devem lhe cair no colo como sempre caíram, não é? Pois uma hora param de cair e a roda da fortuna passa a girar para quem ontem era um Zé Ninguém.
Marleth Silva é jornalista.
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