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O copiloto, a depressão e nós

 | Arte: Felipe Lima
(Foto: Arte: Felipe Lima)

Há notícias que gostaríamos de ignorar para sempre. Como viver com a informação de que o copiloto de um avião comercial com 144 passageiros a bordo, mais a tripulação, decidiu jogá-lo na montanha, matando a todos? Sabemos que fatos como esse levam a uma revisão de procedimentos, que a prevenção de acidentes será melhorada. É assim que a humanidade progride. Mas o ato tresloucado do copiloto nos põe, por minutos ou horas, diante da nossa fragilidade. Estamos sempre diante de um pelotão de fuzilamento. Um pelotão que não enxergamos a maior parte do tempo, felizmente. Caso contrário, como manter uma tranquilidade mínima?

Parece ser contra a natureza humana aceitar que somos parte dessa ordem natural (ou dessa desordem natural) que inclui o caos e o incontrolável, escreveu um comentarista americano sobre a nossa perplexidade diante de tragédias como a de terça-feira. Se fosse uma falha técnica, uma falha humana, um ato de terrorismo, saberíamos contra o que lutar, enxergaríamos o batalhão de fuzilamento na nossa frente. Mas a decisão de um indivíduo cujo pensamento provavelmente nunca conheceremos nem entenderemos; uma decisão tomada e executada em minutos, decisão que poderia ter ficado apenas como um delírio caso o piloto não tivesse sentido necessidade de se levantar durante um voo de 55 minutos; tudo isso mantém a tragédia suspensa no ar, sem nos dar chance de encerrar o assunto nas nossas cabeças.

À luz do dia, os portadores de depressão ou outros transtornos podem ser ajudados, tratados, acompanhados. Demonizados como perigosos, vão se esconder e a situação pode, então, piorar

Então se descobre que o copiloto sofria de depressão e a doença dele está prestes a tomar o lugar daquela explicação de que precisamos. O imponderável se torna menos imponderável e nossa cabeça carente de argumentos agradece. O problema é que o copiloto sofria de depressão – assim como 20% da humanidade. Essa multidão não sai de casa para matar uma pessoa, muito menos 149. O ato selvagem do copiloto criou um problema para os que sofrem de transtornos psicológicos. Como se eles precisassem de mais um problema.

As evidências mostram que portadores desses transtornos tendem a sofrer mais agressões do que agredir. A maioria não se torna agressiva em momentos de desespero, mas apática. Estigmatizá-los como perigosos fortalece a necessidade de que se escondam, que não revelem a doença, para tentar manter uma vida normal e arranjar trabalho. Aí, sim, os riscos se tornam maiores. Nem tanto para nós (já que casos como o do copiloto da Germanwings estão fora da curva de probabilidades), mas para eles mesmos. À luz do dia, os portadores de depressão ou outros transtornos podem ser ajudados, tratados, acompanhados. Demonizados como perigosos, vão se esconder e a situação pode, então, piorar.

(Penso em Winston Churchill, depressivo notório, que comandou a solitária reação britânica contra o nazismo no início da Segunda Guerra Mundial, e imagino o que teria acontecido se ele tivesse sido mandado para casa por causa de sua doença.)

Na quinta-feira em que o promotor público de Marselha relatava o que ouvira nas gravações de áudio do avião alemão, no que parecia ser o roteiro de um curta-metragem de terror como aquele que abre o filme argentino Relatos Selvagens, os ingleses faziam o sepultamento dos ossos do rei Ricardo III, na cidade de Leicester. Ricardo entrou para a história como um assassino e como o personagem mais cruel de Shakespeare. Seus ossos foram encontrados embaixo do piso de um estacionamento, onde estiveram por 500 anos, e agora ganharam uma sepultura. Tudo com muita pompa e circunstância, tudo muito bizarro.

Estranhamente, frases que Shakespeare colocou na boca de Ricardo III soam apropriadas para a cena final do copiloto que matou 149 pessoas deliberadamente. Ele poderia ter emprestado as palavras do rei egocêntrico e sem limites, que no quinto ato da peça, na véspera da batalha em que morreria, depois de ter sido visitado em sonho pelos fantasmas de suas vítimas (ou pelo peso de sua consciência), confessa:

“A quem temo? A mim mesmo? Estou sozinho.
Ricardo ama Ricardo. Eu sou eu mesmo.
Há um assassino aqui? Não. Sim, sou eu.
Devo fugir? De quem? Fugir de mim?
Qual a razão? Vingança? De mim mesmo?
Não, eu me amo.”

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