Após eu ter oferecido carona para um amigo, saímos do cinema em direção ao meu carro, estacionado na rua. Parei na porta do shopping para lembrar onde havia deixado o automóvel. E não lembrei. A situação se prolongou por muitos desconfortáveis minutos. O fato de ter alguém dependendo de mim para ir para casa contribuiu para a tensão e tornou mais difícil trazer de volta a informação que eu buscava. Sugeri que fôssemos caminhando, que eu logo lembraria. O lapso de memória ainda se estendeu por mais tempo do que qualquer um de nós julgaria razoável, até que me recordei que havia deixado o carro em frente a um edifício muito sofisticado. Poooing! Com aquele ponto de partida, a informação voltou e nos dirigimos certeiramente para o carro, estacionado a duas quadras e meia do shopping.
Nada há de trágico nesse “branco”, só um susto e um pouco de vergonha. Não fiquei com medo de que fosse o primeiro sintoma de uma perda de memória verdadeira porque me lembro bem de ter passado por situações parecidas há mais de 20 anos. Tenho “brancos” porque sou distraída. Mas não vou negar que, enquanto caminhava em busca da máquina esquecida na vizinhança do cinema, me perguntei se meu cérebro estava falhando.
A ideia de perder a memória é apavorante. Perder a memória é perder a própria vida, aos poucos, aos pedaços. Uma pessoa que conheci nesta semana me contou um sonho que a assustou e este sonho exemplifica, de modo indireto e ainda assim potente, a dor de esquecer.
No sonho, ela se via pensando no homem que havia sido o grande amor de sua vida, mas sem conseguir lembrar o nome dele. A mulher que sonhava estava consciente de que era a memória que falhava, que o nome dele tinha se apagado, apesar de toda a história dos dois ainda estar lá. Essa parte da informação – o nome dele – sumiu como um arquivo de computador que apagamos sem querer.
A ideia de perder a memória é apavorante. Perder a memória é perder a própria vida, aos poucos, aos pedaços
(E aqui me ocorre que também é difícil lembrar a voz de alguém que amamos e que morreu. A voz, que também é uma marca registrada.)
Houve um tempo em que, para os leigos nesses assuntos da mente, perda de memória era sinônimo de amnésia. Amnésia estava na moda, ainda que quase ninguém conhecesse um caso assim. Perder a memória era coisa rara, exótica, artifício de autor de novela para dar emoção à trama.
Agora, perder a memória se tornou uma possibilidade mais presente, um dos sintomas de doenças que afetam o cérebro e que atingem um número cada vez maior de pessoas porque estão relacionadas com o envelhecimento e o Brasil está envelhecendo mais. Ou vivendo mais, se preferir.
Então, teme-se perder a memória. Surgem treinamentos e cursos e dicas para manter a massa cinzenta em forma. “Ginástica para o cérebro” é oferecida para o público idoso enquanto os demais terceirizam a memória para máquinas digitais que nos poupam de... memorizar. De poemas a números de telefone, não memorizamos nada. E, ironicamente, um dia iremos nos matricular em um curso de memorização.
Mas esquecer é bom – isso é um fato. É uma forma de focar, de selecionar. Irineu Funes – como não lembrar do personagem que Borges chamou de “o memorioso”? – não esquecia nada e passava um dia inteiro repassando tudo o que havia visto em outro dia qualquer. Se recordar é viver, Funes vivia duas vezes. Ou vivia 50% a menos, já que recordar lhe tomava o dia inteiro. Borges deixa claro que o dom de Funes era uma maldição. Lembrando muito, Irineu Funes não conseguia pensar o suficiente. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”, diz o narrador de Borges.
Já esquecer o nome de um grande amor, isso seria doloroso. Porque, ainda que convenha esquecer e seguir em frente, amores e dores fazem parte de quem somos. Talvez fôssemos melhor sem eles, mais livres e disponíveis, mais destemidos e leves, mas será que ainda seríamos nós? Deve ser por isso que não esquecemos algumas situações que deveriam ser esquecidas: por apego a esse eu que cultivamos, a essa história pessoal a que nos agarramos. Esquecer é uma arte que exige treino.
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