Passei a semana ruminando a observação que encontrei em um livro. Deixe-me explicar o contexto. O livro é Os Desaparecidos, de Daniel Mendelsohn. Em busca de informações sobre seu tio-avô que morreu na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial, o autor entrevista senhores e senhoras judeus que viveram na mesma cidadezinha e que sobreviveram ao Holocausto. Ele quer saber como eram seu tio, sua tia e as quatro filhas deles. Tem fotos de todos, mas sente falta de relatos de quem os conheceu. Descobre, então, como é difícil tirar de alguém uma boa descrição da figura de uma pessoa conhecida. E se conforma: “Se alguém agora me pedisse que descrevesse alguns dos vizinhos que moravam do outro lado da minha rua há 40 anos, não estou certo de que eu teria muito a dizer, exceto ‘ele era um engenheiro, eles eram muito simpáticos’”.
Mesmo empenhados em ajudar o americano que busca a história de sua família, os homens e mulheres que ele entrevista são vagos nas descrições. As pessoas são descritas como bonitas, altas ou baixas, simpáticas. O que faz Daniel Mendelsohn refletir sobre o quanto nos acostumamos a confiar em fotografias e nos tornamos preguiçosos por causa delas: “Como é sua mãe?, alguém desejará saber, e a gente dirá ‘espere, vou lhe mostrar’ e recorrerá a uma gaveta ou um álbum para dizer ‘ei-la’”.
É fácil dizer que alguém está gordo ou magro, que é alto ou baixo, aspectos muito evidentes e superficiais. Talvez por isso nos prendamos tanto a eles quando falamos de alguém
Fiz um exercício. Mentalmente, tentei esboçar o rosto da minha mãe. Delicado, fino, boca pequena, pele morena clara, cabelos escuros ondulados. E a boca, e o nariz? Não sei como descrevê-los. Tentei com outras pessoas e descobri algo mais. Descrever o rosto e o corpo de alguém não só é difícil, é uma experiência de intimidade que pode até ser desconfortável. Para descrever é preciso olhar – a intimidade começa aí. E fazer a descrição em si é como deslizar os dedos pelo corpo daquela pessoa.
É fácil dizer que alguém está gordo ou magro, que é alto ou baixo, aspectos muito evidentes e superficiais. Talvez por isso nos prendamos tanto a eles quando falamos de alguém – não é preciso olhar atentamente para notá-los, não é preciso um olhar íntimo. Além do mais, essas são características facilmente reconhecíveis, enquanto falar em um “nariz adunco” pode não significar nada se o interlocutor não souber como é um “nariz adunco”.
Difícil é descrever aquelas características que, de fato, dão personalidade a cada um de nós. Testa alta? Entradas? Nariz pequeno, nariz com asas grandes, nariz “batatudo”? Faltam-me palavras.
Estico o braço em busca de outros livros. Quero saber como duas personagens importantes são descritas por seus criadores: Capitu e Ana Karênina. Mas nem Machado nem Tolstói se ocuparam de fazer um retrato falado de suas heroínas. Sabemos que Ana deve ter uma boa aparência porque faz sucesso com os homens nos salões da nobreza russa que frequenta. Tolstói só pincela modestas descrições dessa mulher que o leitor tem de imaginar. De Capitu, sabemos que tinha “olhos de ressaca”. O leitor que entenda “olhos de ressaca” como quiser. Isso não é uma descrição do corpo de Capitu, mas de sua alma.
Na boa literatura, onde todo o universo é recriado com palavras, pode-se supor que haja competentes descrições dos personagens para que o leitor consiga vê-los. Mas não é isso que acontece, como mostram Ana Karênina e Capitu. A maior parte dos autores nos conta como é a personalidade e o caráter de suas criaturas e não o corpo físico. Geralmente nos fornecem apenas detalhes (a cor do cabelo, o formato dos dedos das mãos...). Os leitores completam as lacunas e criam uma imagem para aquele ser fictício, o que funciona muito bem.
Tudo isso porque observar e retratar o corpo humano é um exercício de sensualidade.