Atrás de cada palavra tem um mundo. Minha mãe mantinha uma mucuta pendurada atrás da porta para guardar calçados. Era de um brim grosso, xadrez de azul e branco. Só da boca de minha mãe ouvi essa palavra: mucuta. “Onde tá o chinelo, mãe?” E ela: “Tá na mucuta” (eu perdia tudo; ela era capaz de encontrar qualquer coisa). Para sempre mucuta será uma palavra evocativa para mim. Evoca a casa da infância e o mundo de onde veio a mãe e que eu não conheci: Minas Gerais, fazendas, outro sotaque, outro vocabulário.
Vou colecionando palavras que soam originais. Alguém me disse outro dia, em tom de fofoca, que a moça teve um piripaque e quase levou um catiripapo. Que furdunço teve ter sido! – penso eu. Demorei para descobrir a palavra furdunço. No meu local de trabalho, de tempos em tempos alguém era acusado de estar armando um furdunço. Na marra aprendi que aqueles que armam furdunço ou que têm siricutico são malvistos. Evitemos os siricuticos, portanto, assim como os faniquitos.
As palavras vão entregando quem é o sujeito ou o que pretende parecer
Também a mãe falava em cacunda – dor na cacunda, carregar a criança na cacunda. Diante do substantivo que ninguém mais falava, tinha para mim que ela inventava. Dona Maria teria um quê de Guimarães Rosa? Uma tendência à invencionice verbal? Nada disso, não se tratava de criatividade com a linguagem e sim de ter crescido em um pedaço do Brasil onde a influência africana era maior, de ter nascido em uma época em que a escravidão fazia parte da história das famílias de forma ao mesmo tempo cândida e vergonhosa. Tia Preta, a filha que o avô teve fora do casamento, trazia no apelido e na pele a história de sua origem. Tia Preta carregava na cacunda a culpa do pai, que se deitou com quem não devia ter se deitado.
Muitas dessas palavras que hoje soam divertidas são africanas. Outras tantas, árabes. Como salamaleque, um exemplo de sonoridade do vocábulo que condiz com o significado. O sobe e desce da língua dentro da boca indica a afetação que o substantivo insinua. Chega de salamaleque, chega de frescura, de patacoada.
O vocabulário que um usa não está na conversa do outro. As palavras vão entregando quem é o sujeito ou o que pretende parecer. Era um deputado ou um senador que bradava outro dia contra a barafunda em que se encontra a República? Barafunda, sim, excelência, mas seu discurso vazio é uma cantilena! Não a doce cantilena de Manuel Bandeira, aquela que dizia que “a minha testa quer carinho, e pede afago à minha mão”. Mas aquela outra, a cantilena vazia do “lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um bom vocábulo”. Político, raquítico, sifilítico.
Não os adotei, mas preservo os vocábulos herdados de dona Maria, que por sua vez os herdou de alguém já desaparecido no tempo (Tia Preta, talvez...) e agora me dou conta de que essas palavras as mantêm presentes, magicamente sobrevivendo ao tempo na recordação de suas mucutas e cacundas.