Ele era um funcionário público com um bom posto na prefeitura. Homem alto, elegante. Frequentava o melhor clube da cidade. Namorava uma loira, que chamava a atenção por onde passava. No trabalho, uma de suas responsabilidades era avaliar os pedidos de autorização de circos e parques de diversão para se instalar temporariamente em terrenos do município. De praxe, o circo que recebia o carimbo de “sem objeções” distribuía alguns ingressos de cortesia no departamento. O melhor par de ingressos ia para o chefe.
Era o tempo em que os circos tinham muitos animais. Quanto melhor o circo, mais feras colocava no picadeiro. Naquela noite, o chefe de departamento e sua loira e linda namorada foram convidados a sentar em um camarote, logo em frente ao picadeiro. Podiam ver de perto a sapatilha da bailarina que se equilibrava sobre o cavalo branco, quase tocavam o macaquinho que acompanhava o palhaço e admiraram o leão, que andava em círculos e que até olhou na direção deles.
De praxe, o circo que recebia o carimbo de “sem objeções” distribuía alguns ingressos de cortesia no departamento
O domador envergava uma casaca e um chicote, que ele estalava no ar para manter o felino intimidado. Antes de cada estalada, olhava bem para o leão. Quando a ponta do chicote levantava a serragem do chão do picadeiro, ele olhava para a loira na plateia. Era um olho no leão e outro na loira. No leão, na loira. Leão, loira. O chicote estalava e ele se empertigava, de olhos semicerrados, procurando a mulher bonita na plateia. Sobre o funcionário público podia se dizer tudo, menos que tinha sangue de barata. Mais um estalo e mais um olhar e ele não se conteve. Pulou para dentro do picadeiro e deu um soco no rosto do domador. Como se a fúria fosse tanta que precisasse de outra vítima, virou-se para o leão e o chutou nas ancas. Depois correu de volta para o camarote, onde a loira o esperava com gritos histéricos.
As arquibancadas quase vieram abaixo de tantos aplausos. Nunca souberam que o ataque ao leão e ao domador não fazia parte do espetáculo.
***
É o primeiro dia de aula da menininha. Seis anos e já terá a responsabilidade de ir e voltar sozinha da escola. Algo normal naquela época, começo da década de 50. A mãe mostra o caminho para a filha. Uniformizada de sainha azul e camisa branca, de mãos dadas com a mãe – na outra mão, a pasta de couro onde leva os cadernos –, ela embarca no ônibus, logo ali, na quadra onde mora. Descem em frente à escola. A mãe explica que, para voltar para casa, ela só tem de tomar o ônibus de novo. Assim a menininha fez. Ao meio-dia rumou decidida para o mesmo ponto onde descera com a mãe e lá embarcou no ônibus. Foi até o ponto final, onde já não havia mais para onde ir. Olhou em volta e viu o centro da cidade, uma praça movimentada, calçadas lotadas de adultos que andavam com pressa. Caminhou olhando em volta. Estava na frente de um bar. Abordou o homem que guardava garrafas na geladeira:
“Saí da escola e peguei o ônibus como minha mãe mandou, mas não sei onde tá a minha casa.”
O comerciante perguntou se ela sabia o número de telefone de casa.
Não tinha telefone em casa.
Mas lembrou do único número de telefone que conhecia, o do padrinho: 3371.
O número foi discado e o grande aparelho preto, pesado e brilhante foi entregue a ela.
“Alô”, disse a voz grossa do padrinho.
Era a primeira vez que ela falava ao telefone. Só teve tempo de explicar o problema. Devolveu o aparelho ao comerciante, que ditou o endereço ao homem que logo chegaria para pegá-la.
Enquanto esperava, ganhou uma garrafinha de Coca-Cola, a primeira de sua vida.
A partir do dia seguinte, ela rumou para o grupo escolar bem informada de que o ônibus que a levaria de volta para casa estava lá, em frente ao ponto em que ela descia para ir à escola, mas do outro lado da rua.
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