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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Antes que junho acabe, vamos ouvir um tango. Será Por una cabeza, de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera, que morreram juntos no dia 24 de junho de 1935. Sei que vamos querer ouvir de novo e de novo. Ele traz uma frase (a que lhe dá nome) que invade nossa cabeça como um perfume e nos mantém cativos com sua sinuosidade, suas ondulações. Tango é uma música feita para ser dançada. Mas a dança em si é difícil, elaborada. É sensual e por isso não basta dominar os passos. É preciso expressar-se com o corpo, expor-se. Por isso todo mundo gosta de vê-la, mas poucos se arriscam a dançá-la.

Por una cabeza fala de um homem que lamenta ter apostado e perdido. O que o atormenta não é só a falta de sorte (seu cavalo não ganhou “por uma cabeça”), mas também a decepção por ter caído na tentação de apostar mais uma vez. Sabe que não deve, que a busca do prazer e da aventura está acabando com ele, mas não resiste. O tango mescla o drama do jogador com uma situação paralela. É outro tipo de jogo, o da mulher que ele deseja, mas que, depois de lhe dar alguma esperança, passa a ignorá-lo.

Gardel entendia de pangarés, de música, de amor, de tudo

É impressionante como Gardel conseguiu fazer uma melodia que se ajusta às duas situações: a vivência de um jogo sensual que vai acabando e a frustração do jogador. Nos dois casos, o homem chegou a sentir o prazer de ter o que desejava. Mas o objeto do desejo escapou “por uma cabeça”. As duas derrotas estão ali nos acordes que vão e vêm em arabescos sonoros.

Imaginei que Gardel havia composto a música e entregado para seu parceiro Alfredo Le Pera, que teve a inspiração, que me parecia exótica, de falar de cavalos. Mas foi o contrário. A história está contada no livro do arranjador que trabalhou com os dois, Terig Tucci. O livro Gardel en New York foi publicado nos Estados Unidos em 1969 e está desaparecido, mas este trecho é sempre citado como testemunho do nascimento de Por uma cabeza:

“O telefone tocou às três da madrugada. Sonolento, peguei o aparelho e ouvi a voz de Gardel que me disse com evidente satisfação: ‘Che, velho, acabo de encontrar uma melodia incrível para o tango Por una cabeza”.

Sim, o sortudo do Tucci pegou o telefone e ouviu a voz de Gardel. O que hoje parece uma cena mágica para ele deve ter sido uma chateação. Tanto é que, ao ouvir a canção cantarolada, o arranjador achou tudo muito sem graça. E disse isso a Gardel, que respondeu: “Olha aqui, Beethoven, você fica aí com tuas colcheias e semifusas, mas não se meta comigo em assunto de pangarés”.

Se tomarmos a beleza do tango como prova, não há dúvida de que Gardel entendia de pangarés, de música, de amor, de tudo. O mesmo se pode dizer de seu parceiro, o brasileiro Le Pera. Nascido em São Paulo e criado em Buenos Aires, ele era tão boêmio quanto Gardel. Muito culto, leitor de poesia, fazia letras sem as gírias portenhas, com um vocabulário limpo e por isso com mais alcance internacional e, hoje sabemos, mais compreensível para as gerações seguintes.

Dizem que Alfredo Le Pera anda meio esquecido na Argentina, o que é uma injustiça porque são deles as melhores frases que Gardel cantou, inclusive os versos de El Dia em que me Quieras e Volver.

O sucesso de Por una cabeza aumentou ao longo dos anos e ele entrou naquela zona de obras tão populares que até parecem não ter dono. Na internet, é o tango que o Al Pacino dançou em Perfume de Mulher, que Lian Neeson ouve em A Lista de Schindler, que Schwarzenegger não consegue dançar em True Lies nem com a ajuda da Jamie Lee Curtis. É o tango do Yo-Yo Ma, do Itzhak Perlman, do Andrea Bocelli. É o tango do Barack Obama. É um tango sinuoso, delicado e muito masculino.

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