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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Há quem carregue piano e há quem toque piano. Às vezes os carregadores de piano são valorizados, mas para a autoestima do sujeito, o que faz bem mesmo é tocar piano. Porque é uma tarefa refinada, porque são poucos os que podem fazer, porque não passa despercebida. Diante de um tocador de piano, o carregador se sente pequeno.

A maior parte do tempo, quem trabalha faz papel de carregador, especialmente aqueles que trabalham com processos, sejam de produção ou de análise. O juiz que passa dias debruçado sobre os autos para preparar uma sentença pode se sentir um carregador de piano. Assim como o administrador que toma várias providências complexas, mas invisíveis, ao longo do dia. Quando chega em casa e diz à família que teve um dia pesado, não terá orgulho em listar as tarefas que executou, porque parecerão pequenas.

O mundo do trabalho é o mundo dos carregadores de piano que, vez ou outra, se reinventam tocando piano.

Há anos se diz que as máquinas carregarão o piano e que nós, seres humanos, usaremos nosso tempo e criatividade para ter ideias, para revolucionar o mundo. E há anos o mundo do trabalho se encarrega de mostrar que os carregadores de piano são fundamentais.

Enquanto seres humanos forem seres humanos (e não engrenagens – e aí está a grande contradição não percebida por quem insiste que poderíamos estar só pensando e não carregando piano) será preciso "perder tempo" ouvindo as partes envolvidas com nosso trabalho e falando com elas. Explicando e tentando entender.

As pessoas não se reprogramam automaticamente ao assinar um contrato de trabalho para agir de acordo com a linha de uma empresa, instituição pública ou privada. Elas precisarão ser convencidas e informadas; suas opiniões deverão ser ouvidas; farão as coisas como acham melhor e não como se esperava que fizessem; surpreenderão expondo falhas do sistema. Seja este sistema o mundo do trabalho ou a sociedade. Porque o comportamento errático do ser humano não é uma falha do sistema. O sistema é que falha ao não reconhecer que o ser humano é errático. E isso não é ruim. Muito pelo contrário.

Em filmes sobre adolescentes rebeldes costuma ter uma cena em que o protagonista despreza o professor ou o funcionário que faz um trabalho burocrático e mostra a ele que não passa de um infeliz. Em oposição ao "burocrata", o garoto sai aos pulos, para viver sua vida de adolescentes sem compromisso.

Ninguém tem pena do professor ou do funcionário porque eles parecem personificar os chatos, os entediados, os sem-vida, os que só sobrevivem. É o carregador de piano reduzido à posição mais baixa da escala do saber-viver.

É uma redução, uma simplificação. O carregador de piano não é necessariamente um chato, um sem imaginação. Ele só vira chato quando se emaranha tão profundamente no processo, que o processo toma conta dele, como naqueles filmes em que um extraterrestre enfia um tentáculo longo e fino na nuca do humano e passa a dominar seu cérebro. Os processos de trabalho e a burocracia têm tentaculozinhos finos e venenosos e podem nos dominar. Aí o carregador de piano esquece que há um teclado no instrumento e que há um cérebro criativo em quem o carrega. E a vida fica chata. E ele pode se transformar no personagem dos filmes de adolescentes. O processo venceu a música.

Porém há música no fim do túnel. Há carregadores que compõem, mentalmente, enquanto trabalham. Que observam o mundo à sua volta e reúnem reflexões que depois transformarão em música. Que batucam no tampo do piano e que se divertem. O trabalho do carregador não é necessariamente tortura. Nem é necessariamente menor. Até quem toca o piano, afinal, precisa de muito esforço e repetição para fazer algo razoável, não é?

Mas é no momento em que de alguma forma sentimos que estamos fazendo nossa própria música – ou seja, expressando-nos – que nos sentimos seres humanos de verdade. Não dá para ser só carregador de piano a vida inteira.

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