Conhecer a verdade é sempre uma tarefa complexa e arriscada. Mesmo que não queiramos ter consciência, ela acaba se manifestando, quase nunca de maneira agradável. Eis uma chave de leitura para os contos do mais recente livro de Mario Sabino (A boca da verdade – Record, 2009), estudo de seres que se aprisionam em suas próprias opções existenciais. No relato que dá título ao volume, e que o abre, o narrador fala do equipamento de opressão psicológica que leva tal nome: "Havia sido em Roma: a Boca da Verdade. No tampo de esgoto do império antigo, afixado numa parede externa da Igreja de Santa Maria in Cosmedin, um artesão talhara a figura monstruosa, docemente monstruosa, em cuja boca aberta e desdentada a lenda fazia decepar as mãos dos mentirosos ali enfiadas" (p.16). Sob este símbolo das misérias humanas constroem-se os contos de Sabino.

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Continua forte no autor de O dia em que matei meu pai a relação radicalizada entre pai e filho, que agora se manifesta em níveis bastante distintos. A boca da verdade traz uma dedicatória que deve ser entendida dentro do mecanismo ficcional do volume: "A meu pai, Cronos esfaimado, in memoriam". Esta senha adquire seu sentido no conto-título, um relato denso de possíveis. Uma das formas de ler este conto é destacando a questão do postiço. O pai do narrador súbito se torna um senhor envelhecido (envilecido), que passa a usar uma dentadura que não apenas o enfeia como o falsifica. A questão do postiço vai aparecer em outros contos, como em "Demônio com coração de mármore", em que o implante de cabelo feito pelo advogado bem-sucedido, um dos clichês de sua vida de novo-rico, numa tentativa de ser um velho jovem, torna-se um acréscimo que o arrasta a um fim trágico.

Já no conto inicial, a dentadura tira do pai o poder formador. O filho não se reconhece neste homem avesso ao rigor e ao afeto, sorrindo falsamente, e busca "paternidades adotivas". Sem querer fingir um amor inexistente pelo pai, ele mostra a sua crueldade heróica. Não aceita sua origem biológica, numa indiferença total a ela, criando uma personalidade que é também artificial, mas eleita. Com a morte do pai, poderia herdar esta dentadura que não seguiu na boca do morto, mas prefere destiná-la ao lixo, eliminando todo o resquício do passado (antepassado) no qual não se vê. Trata-se de um conto em que o filho descarta as imagens paternas ao exercer contra ele a energia devoradora que todo pai impõe sobre o filho: "Houve a referência mitológica na infância, seria de Cronos pronto a devorar a cria" (p.15). Eliminar o pai e sua dentadura é destruir quem tenta destruí-lo.

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A luta entre gerações também acontece em outros contos. Em "Essência", ele transcende o período de vida do pai, que continua em atrito com os descendentes mesmo depois de morto, legando-lhes todo o seu lado sombrio, para que se sintam parte da maldade humana, herdeiros de misérias morais proporcionais aos dotes pecuniários. Em "Dona Olga", o embate se dá com as forças místicas que a mãe maneja. Só com a sua morte o filho pode ocupar o seu lugar no "apartamento sem pai", para inventar-se, depois, por conta própria. Já em "Demônio com coração de mármore", o sócio que se sente um verdadeiro filho do outro, o homem poderoso que empresarialmente o acolhera, encontra um motivo simbólico para destruir aquele que figura como pai, escancarando as regras impiedosas dos sucessos financeiros.

Mas é em "Genética" que a relação pai e filho se adensa, num jogo poético de espelhamento da criança no pai, e vice-versa, para uma possível e descontrolada construção do homem. Como o sistema genético é uma combinação aleatória, estes personagens buscam algo que os liberte deste acaso. Se a biologia é a força destruidora, repetição de genes (de histórias e de fraquezas) e também manifestação da rusticidade animal, os contos de Mario Sabino, sem falsear os comportamentos humanos, fazem da cultura e da arte uma forma de fugir a código biológico. Matar o pai (no sentido amplo e psicanalítico) é abrir a possibilidade de uma outra experiência de ser. É participar de uma família que congrega as melhores mentes da história.

Assim, o jogo permanente na literatura de Mario Sabino se dá entre o genético e o cultural. En­­tregar-se ao fisiológico (como no conto "As profundezas") é o sinal máximo da decadência. Para nos salvar desta queda há o grande mundo da cultura, que nos coloca em contato com outros pais, mais potentes do que aqueles que recebemos no sorteio de genes. A outra genealogia pode nascer de uma conexão com o demoníaco ("A visita que Edward Hopper recebeu dois anos antes de morrer") ou com o simulacro ("O grande impostor"), mas é o que nos resta neste precário, e por isso humano, exercício do livre-arbítrio.

Esta questão de fundo determina as opções formais de Mario Sa­­bino, cujos recursos narrativos se recusam a assumir configurações mais coladas ao imediato da oralidade. Ele busca um tom eloqüente, filosófico, elevado, que o afasta das vozes espontâneas, negando a entrega a um uso rasteiro da linguagem. Estamos diante de contos que pensam e fazem pensar, numa ficção reflexiva, declaradamente antinaturalista, pois só o conhecimento conquistado, muitas vezes à força, minimiza esta outra orfandade. A orfandade cultural.

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