Vou visitar minha família e chego à casa de minha infância à noite. Ao acordar, no dia seguinte, não encontro meus sapatos. São velhos, comprei-os em 1999, mas tenho um carinho especial por eles. Quando entro na cozinha, para tomar o café preparado por meu padrasto (a quem chamo de pai), encontro meu irmão caçula calçando-os. Quer os sapatos. Tento dizer que são importados, gosto muito deles. Meu irmão me agradece por ter levado um presente e encerra a conversa.
Depois da xícara de café, o pai diz que está na hora. Saio com os chinelos de dedo, molhando os pés nas poças de lama, pois choveu a noite inteira e ainda chove. Meu irmão vai com meus sapatos. A poucos metros, o barracão da máquina de arroz está aberto. Meus tios, primos e empregados já estão lá. Todos, menos eu, sem blusa na madrugada fria.
Meu pai pega feixes de vassouras que ficaram curtindo em baldes com água e distribui as tarefas. Fico com a mais fácil, porque me desacostumei totalmente a fazer serviços manuais. Vou batendo um prego na extremidade de cabos, a maioria nova, de madeira clara, mas alguns escuros, já gastos pelo muito uso.
Um grupo vai amarrando arame no prego, prendendo assim as hastes de vassouras, cuja base se encontra maleável por conta da exposição à água. Para acomodar bem, batem tudo com o martelo deitado, depois apertam mais o arame. São quatro camadas de vassoura, que formam uma espécie de saia rodada. Outro grupo pega este material e prende a vassoura em morsas de madeira, como um O quadrado. Isso dá o formato achatado à rama da vassoura. Com uma agulha de costurar sacaria, usando barbantes de plástico, de um branco perolizado, a pessoa faz costuras horizontais na palha, deixando no chão mais uma peça para o acabamento.
Com uma faca afiada, a mesma que usamos para sangrar os porcos, um adulto leva estas peças para uma bancada de madeira e apara os dois extremos da palha. Na parte do talo amarrado ao cabo, o corte é feito com um leve declive para a madeira. Ouço o barulho da faca cortando maciamente os talos. Na parte inversa, que varrerá o chão, o corte é reto, formando uma escova áspera.
O último serviço é atar na parte de cima do cabo um barbante, formando uma laçada firme, que servirá para que se pendure a vassoura na parede do barracão. Uma por uma, assim que finalizadas, elas são enroscadas nos pregos, dando um colorido novo à parede interna jamais pintada.
Se a confecção de vassouras termina aí, ela começa bem antes. O pai primeiro plantou as sementes recolhidas do ano anterior, secou-as e guardou-as em sacos. Ou planta num canto de um dos sítios ou chácaras da família, ou nos terrenos baldios, onde geralmente fazemos nossos campinhos. Capinou este terreno, depois colheu. A vassoura dá como se fosse um pé de milho, só que mais fino, soltando hastes com sementinhas pequenas e lustrosas. Feita a colheita com o ferro de cortar arroz, este que aparece no símbolo do comunismo, as hastes são secas.
Quando não têm mais umidade, a pai leva toda a colheita para os fundos do barracão e, numa engenhoca que ele construiu, faz a limpeza das sementes. Apenas os adultos podem se dedicar a isso, pois é um serviço perigoso.
Numa mesa rústica, ele colocou um tronco de madeira cravado de pregos sem a cabeça, fincados no sentido contrário, deixando a parte mais perfurante para cima. É como uma escova redonda de cabelo. Este tronco recebeu um eixo de aço, com polias nos extremos. Em uma delas vai a correia, ligada a um motor elétrico instalado na parte inferior da mesa. Acionado o motor, o tronco gira, e as pessoas vão colocando as vassouras, em pequenos punhados, para tirar toda a semente. O cheiro é forte neste momento, pois além de esfiapar as hastes, destroem-se muitas sementes, que liberam um odor de seiva.
A palha limpa é amarrada em fardos e guardada longe do chão. Ao primeiro sinal de chuva, para não perder o dia de trabalho, todos se reúnem no barracão de madeira para fabricar vassouras. Não há um número definido, mas as pessoas correm para produzir o máximo. Quando acabar o material armazenado, e vindo uma outra chuva, a pai terá que arranjar outra ocupação para aqueles homens, uns já de idade, outros ainda na infância. Até lá, poderemos ver as vassouras prontinhas (as melhores da cidade, pois não soltam o cabo) expostas sobre as caixas de arroz limpo. As mulheres comprarão esses utensílios domésticos na hora de buscar o alimento para o almoço.
Os da família e os que atuaram no fabrico não pagam por elas, mas devem trazer o cabo de madeira da antiga. Meu pai guarda o cabo sujo para o próximo mutirão das vassouras.
Na hora do almoço, quando estamos trabalhando, alegremente espalhados pelo chão, saímos um de cada vez para não parar o serviço. Vou almoçar, desviando das poças do quintal de terra, enquanto o pai e meus irmãos ficam. Quando volto, alguns minutos depois, vai outro. E, assim, o ritmo de trabalho não diminuiu quase nada. Só paramos quando vem a noite.
Fazia muitos anos que sequer usava essas vassouras. Logo que vim de Peabiru, em minhas visitas à cidade, sempre voltava com esses presentes de meu pai. Eu ficava constrangido porque não tinha devolvido os cabos, descartados assim que as vassouras não prestavam mais.
Mas nesta madrugada sonhei com o ritual comunitário. E revivi cada um daqueles momentos. Tudo talvez tenha retornado porque minha mãe me contou, algumas semanas atrás, que o barracão de madeira, totalmente vazio há anos, fora vendido. Vão desmantelar mais um pedaço de minha infância. Na hora me deprimi, mas depois fiquei pensando que nada pode varrer o que a memória retém.