Mestre dos fragmentos, das fábulas, dos microcontos, dos aforismos e de outros gêneros da brevidade, o guatemalteco Augusto Monterroso (1921-2003) também se dedicou ao romance é de 1978 o livro só agora traduzido no Brasil: O Resto É Silêncio (Novo Século, 2011). Antes, Millôr Fernandes havia vertido para o português os pequenos textos de Ovelha Negra e Outras Fábulas (Record, 1983), único título de Monterroso até então disponível no Brasil, não obstante o renome que o autor alcançou principalmente por um conto seu tido como o menor do mundo: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá".
Mesmo optando pelo formato do romance, ainda aí se manifesta o autor de pequenas narrativas e de comentários que tendem para o ensaio. Ele produz na verdade um antirromance, em que elementos essenciais do gênero são negados. Não há um enredo, os personagens se confundem com o autor (ou com os autores), não há uma força estruturante (fragmentos heterogêneos são recolhidos ao livro) nem uma preocupação em definir uma trajetória do protagonista, visto quase sempre pela lente deformada de pessoas que conviveram com ele ou de seus textos irrelevantes. Isso talvez permita entender o título tirado de Shakespeare: é nesses pequenos textos equivocados que está a verdade, não havendo nada além deles.
Dono de um olhar irônico, a partir do qual construiu a sua obra, Monterroso é avesso à tendência épica do romance latino-americano, evitando assim o desejo de construir personagens marcantes. Este seu O Resto É Silêncio pretende ser a história de um intelectual (Eduardo Torres) de um lugar imaginário (San Blás), renunciando ao relato de uma vida. Ele inventa amigos do protagonista, que dão testemunhos sobre si próprio, mostrando ou a mediocridade da figura ou a vaidade de quem quer aparecer na hora de falar de uma figura pública. Além disso, são coligidos textos (ensaios e aforismos) e mesmo desenhos com traços infantis de Torres, material que o mostra como um autor provinciano e medíocre. Em um desses textos do pretenso herói das letras, ele faz uma crítica sobre o livro A Ovelha Negra e Outras Fábulas, de Augusto Monterroso, autor "conhecido por sua falsa ambiguidade de todo gênero e número" (p.108). Assim, o autor biográfico é feito personagem pela voz de seu protagonista. Esta sobreposição de identidades é reforçada na passagem em que se analisa o arremedo de soneto "O burro de San Blás (Mas sempre há alguém mais)", em que se misturam ainda mais as autorias, remetendo a uma ideia de que todos se encaixam neste papel asnático de Eduardo Torres.
Talvez esteja nessa questão a resposta para a obsessão de Monterroso pelos animais, pelas fábulas. Ele quer mostrar a superioridade do reino selvagem, em que os bichos revelam alguma inteligência, sugerindo por contraste a natureza embrutecida do homem. Tendo esta percepção do humano, ele constrói um romance em que Eduardo Torres é apresentado ao leitor seja pela imbecilidade daqueles que os rodeiam seja pela imbecilidade de seus próprios textos.
Mesmo o formato do romance é um sinal desta falta de inteligência. Há ali todos os materiais literários, todos os recursos, usados de forma equivocada: das notas de rodapé ao índice onomástico; da utilização equívoca de pseudônimos a uma bibliografia pretensiosa e falsa; das platitudes filosóficas aos erros de análise. A incapacidade de construir um romance é mais um tributo ao burro de San Blás, deliciosa caricatura do intelectual latino-americano, esse animal das letras.
Serviço:O Resto É Silêncio, de Augusto Monterroso. Editora Novo Século. 160 págs. Romance. Preço médio: R$ 27,50.
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