Um grande romance não precisa trazer nem temas nem personagens grandiosos e sim explorar todas as ramificações dos pequenos dramas humanos. É com esta obsessão que o escritor judeu-alemão Arthur Schnitzler (1862-1931) construiu O Caminho para a Liberdade (1908), retrato de Viena nos últimos anos da década de 1890.
Os personagens, em sua maioria, são artistas, intelectuais, cientistas ou políticos. Todos nutrem desejos de realizar alguma obra, mas esses sonhos são eternamente adiados ou já fazem parte de algum quarto de despejo interior. Costurando estas várias trajetórias, aparece a figura emblemática do barão Georg von Wergenthin, músico diletante. O aristocrata tem seus casos amorosos, vive do capital do pai recém-falecido e projeta se dedicar seriamente à composição de uma ópera.
O romance é construído com recursos do teatro outro gênero praticado por Schnitzler. Na maior parte das vezes, sabemos dos acontecimentos pelos longos e deliciosos diálogos entre os personagens espelho móvel da máquina daquele mundo. Como praticamente não trabalham, vivem em reuniões sociais, em viagens pelo campo ou por outros países, em noitadas nos cafés, e conversam muito. Mas esta falação tem função narrativa. De um capítulo para outro, há lapsos que as palestras vão elucidar. Em meio aos fatos revelados retrospectivamente, manifestam-se as ações mínimas que dão o andamento do romance. O autor ainda dota alguns personagens de monólogos interiores, verdadeiros contrapontos entre o que se diz e o que se cala, criando assim fundos falsos para a narrativa.
O principal conflito coletivo acontece entre judeus e nacionalistas. Há embates públicos, xingamentos, e ao mesmo tempo uma convivência fingidamente civilizada entre eles. Alguns judeus se deixam inclusive assimilar. Outros planejam a criação de uma pátria de retorno, mas tudo continua no nível dos discursos.
Assim, o drama pessoal de Georg von Wergenthin se estende a toda a sociedade vienense. Depois de ter encerrado uma paixão, ele se aproxima da cantora Anna com o pretexto das afinidades eletivas e seduz a moça-família. É relacionamento para uma temporada. Mas Anna engravida e o barão promete não deixar a amante. Viajam para esconder a gravidez e, em seguida, alugam uma casa de campo para que a mãe possa dar à luz em segredo e depois entregar a criança a alguém que a crie. Georg não fala em se casar e isso é absolutamente normal em seu círculo de amizades. Ele também se envolve com outras mulheres, próximas da amante, deixando-a sozinha para, pretensamente, se dedicar à criação musical. Todos sabem da gravidez; mas ninguém sabe da gravidez.
As imagens centrais deste romance estão relacionadas à casa. O barão tem que entregar a mansão alugada onde mora. Na viagem ao exterior, ele visita a casa de veraneio em que sua mãe morreu, tentando se convencer da futilidade de um lar. Quando se refere ao feto, Anna diz que desconhece em que casa ele nascerá (ainda não haviam alugado uma). Quando a locam, descobrem nas proximidades uma casinha de brinquedo abandonada, antecipação do que acontecerá.
É que a criança nasce morta, reflexo da falta de vontade e de amor do pai. A única atitude do barão é aceitar um emprego na Alemanha, que não deixa de ser uma fuga, pois não leva a amante e continua vivendo seus casos até que se confirme para ele mesmo a sua identidade a de um medíocre Don Juan.
Sem um lugar próprio, sem fazer nada que tenha o valor fundante de uma casa, nem mesmo uma obra musical ou literária, muito menos a edificação de uma pátria judia, estes personagens vivem um momento de total estagnação, onde apenas o hedonismo, o esporte sexual e o diletantismo artístico se manifestam, terreno totalmente livre para as forças nazistas que já afiavam suas garras. Ironicamente, aquele era o caminho para os campos de concentração.
Serviço
O Caminho para a Liberdade, de Arthur Schnitzler. Tradução de Marcelo Backes. Editora Record, 539 páginas, R$ 59,90.