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Miguel Sanches Neto

Hóspedes

Lewis Hyde defende que, na
origem da arte, existe uma energia tranformadora que vem do passado | Divulgação
Lewis Hyde defende que, na origem da arte, existe uma energia tranformadora que vem do passado (Foto: Divulgação)

Raros são os ensaios que aliam reflexão erudita e prazer estético, caso de A Dádiva – como o espírito criador transforma o mundo, do poeta norte-americano Lewis Hyde. A sua hipótese inicial era de que, na origem de toda arte, existe uma energia transformadora que vem do passado, por meio dos livros e do contato com a comunidade, e que só pode ser cultivada em doações sucessivas. É assim que ele entende o dom: ponto de confluência do coletivo com o individual, numa circulação incessante. Com o triunfo do capitalismo, no entanto, a obra de arte se fez mercadoria, provocando um impasse: como não perder os dons artísticos em relações marcadamente mercadológicas? Seria o fim da arte?

Na primeira parte do livro, o autor recupera em documentos antropológicos, lendas e contos populares várias manifestações das dádivas. Hyde reconhece o caráter erótico deste processo avesso ao lucro, em que a generosidade é fator de desenvolvimento comunitário. Ele diferencia o trabalho capitalista (lucrativo) e o labor (criativo). O labor faz com que as dádivas se movam, gerando relações afetivas entre os que a praticam.

O problema é que as dádivas funcionam muito bem em pequenas comunidades, onde os seres envolvidos não são anônimos e onde não há espaço para a usura. Em um capítulo central, ele trata da proibição bíblica da usura, e como isso vai sendo reelaborado a partir da separação, que acontece com o calvinismo, entre a lei moral e a lei civil. Nesta, o lucro passa a ser permitido.

Hyde usa estas parábolas para compreender o papel do escritor no século 19 (o século da usura) e no século 20 (o do triunfo do capitalismo), respectivamente nas trajetórias dos poetas Walt Whitman e Ezra Pound.

O primeiro, grande defensor da diversidade, renuncia a uma carreira profissional, à acumulação de bens, para se dedicar eroticamente ao outro, às classes mais rústicas, num contato corporal com pessoas, objetos e a natureza. É dessa forma que ele mantém ativos os seus dons, cultivando orgulhosamente a compaixão. Whitman desrespeita todas as convenções e hierarquias para instaurar outra identidade: "ele queria substituir o sistema capitalista vigente pelo ‘amor entre camaradas’" (p.301). Nesse projeto de uma democracia fundada na arte, ele deu voz a uma população de iletrados, com quem se unira visceralmente.

Pound quer também uma pátria artística e se revolta contra o caráter mercantil de seu tempo, buscando a tradição das grandes mentes e sonhando, enlouquecido, com um mundo perfeito. Nessa ilusão, adere ao fascismo (que prometia o homem novo) e luta contra uma imagem estereotipada dos judeus, a quem se reputavam todos os males econômicos.

Depois de uma vida de pobreza e de humilhações – foi preso e exposto em uma jaula com a vitória dos Aliados –, Pound emudece. É justamente quando o poeta judeu Allen Ginsberg o procura. O jovem diz que a poesia de Pound, conquanto antissemítica, cumpriu uma função transformadora para ele. Diante deste perdão, Pound confessa o próprio erro (o inimigo não era o judeu, mas avareza de todo ser humano) e há uma comunhão beatificadora entre os dois poetas.

Tanto em Whitman quanto em Pound, a ação desinteressada deu origem a obras que herdam e alimentam outras vozes, em oposição ao materialismo moderno e seu desejo de individualismo.

Finalizando, Hyde aponta um erro em sua hipótese inicial. Ele via como excludentes os conceitos de arte e commodities, sem perceber que esta oposição é contraproducente. No estágio em que nos encontramos, "pouco vale um ataque radical ao mercado" (p.405). O artista moderno deve buscar formas de independência, mantendo-se como um polo erótico que equilibra minimamente a economia racional. Ou seja, ele dever ser um hóspede dos dons, e zelar por eles.

Serviço

A Dádiva: como o Espírito Criador Transforma o Mundode Lewis Hyde. Trad. Maria Alice Máximo. Civilização Brasileira, 480 páginas. R$ 59,90. Ensaio.

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