Livro
O Filho de Mil Homens
Valter Hugo Mãe. Editora Cosac Naify. 256 págs., R$ 39. Romance.
A literatura se encaminha para uma crença no ser humano, assumindo um papel educativo tido como ultrapassado. Educar pela sensibilidade, pelo exercício de encenação de uma outra vida, para a formação emocional do leitor. Quando tudo nega a importância da literatura, um grupo de escritores muito diferentes entre si afirma este seu velho poder, o da emoção civilizadora.
Há um fundo utópico nestes livros que tentam construir outra humanidade, tal como se pode ver no recente O Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe (Cosac Naify, 2012). Trocando a linguagem veloz dos fatos pela escrita sensitiva, focada nos estados de alma dos personagens e não em suas ações, o escritor se vale de uma estrutura poética que mina os valores imperantes na prosa. É ficção de poeta, cujo centro é a linguagem. Mas uma linguagem feita sob medida para os seres que se valem dela.
Assim, a própria linguagem tem função humanizadora, pois coloca o leitor em contato com seres que não se enquadram no sistema e que exercem esta diferença por meio de uma fala desviante, potencialmente poética. O ritmo da leitura leva a uma outra postura diante das pessoas.
O território deste romance também marca um afastamento em relação ao espaço cosmopolita que tomou conta de tudo. A narrativa se passa em uma aldeia, onde as pessoas vivem uma essencialidade social: são pescadores, agricultores, caseiros etc. O alimento é pouco; o trabalho, cotidiano. O romance, dessa forma, permite que se habite literariamente uma latitude em conflito com o mundo moderno.
A própria construção dos personagens tem um sentido pouco comum em nosso anódino agora. Elas aparecem inicialmente como seres incompletos, atormentadas por aquilo que lhes falta, para seguir rumo a uma inusitada unidade. Aos poucos, passando por perdas e por negações, frustrando as expectativas, elas encontram uma experiência de plenitude. Mesmo no plano da trama, tudo começa descosido, com a história de pessoas vivendo isoladamente as suas fraquezas, mas a mão do romancista vai aproximando essas solidões, e com elas constrói um clã, anunciando um projeto maior de felicidade nas gerações que ainda virão. O livro é simbolicamente dedicado às crianças e termina como a celebração do filho, um filho adotivo que, por isso mesmo, não pertence a uma história individualizada, mas comunal. Opera-se assim um movimento do indivíduo para o coletivo.
Estes seres não correspondem à média do cidadão contemporâneo. São individualidades problematizadas, que sofrem algum tipo de mutilação, interior ou exterior. Um pescador que sonha ser pai e compra um boneco para acalentar. Uma anã que engravida depois de supostamente ter dormido com todos os homens da aldeia. Uma solteirona ressequida. Um gay que se casa para contentar a mãe. Um velho que quer comprar uma companheira para o fim da vida. E muitos órfãos, pois a orfandade é o sinônimo mais feroz da incompletude.
Sofrendo baixas, envolvidos em um clima mágico próprio das sociedades rurais, estas pessoas vão construindo vínculos afetivos e sexuais, ao ponto de constituírem uma família não sanguínea, mas com laços ainda mais fortes. Ao adotar as crianças sem pais, ao se casar com aqueles que padecem de solidão e ao se importar uns com os outros, surge um novo modelo relacional. E a família acaba sendo a própria aldeia, onde se manifestam o entusiasmo e o amor.
Nesta trajetória utópica, cada personagem se faz filho do todo, e por isso não sofre com a rejeição: "todos nascemos filhos de mil pais e mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo" (p.188). Construir este sentimento de pertença é o que deseja Valter Hugo Mãe, fazendo com que o leitor assim como os seus personagens se entusiasme com a possibilidade de mudar minimamente o mundo.
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