Ligado a toda uma tradição de biorromance, muito forte no Brasil, onde o autor se coloca naturalmente como personagem, Poltrona 27, do mineiro Carlos Herculano Lopes, se confunde com sua história pessoal. O narrador se chama Carlinhos e vive as mesmas experiências de quem assina o livro. Cronista consagrado, Carlos Herculano usa aqui a liberdade que a crônica dá para que o eu se autorrepresente, fazendo um romance nos mesmos parâmetros de leveza e comoção deste gênero tipicamente nacional.

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Começa que o romance tem uma estrutura de crônica. Não há um conflito, nem um conjunto de células dramáticas a compor um todo, e sim histórias colhidas ao acaso dos afetos, que vão construindo um relato de muitas vozes, em que as vivências do narrador funcionam como poderosa argamassa. O personagem principal do livro é um ônibus que faz a linha Belo Horizonte / Santa Marta. Escolhendo sempre a mesma poltrona, sinal de fidelidade com forte simbolismo, o narrador faz pe­­riodicamente uma viagem de volta à cidade onde passou a infância, para reviver a fazenda que pertencera ao pai.

Afastado de sua terra, deixada para que pudesse continuar os estudos, Carlinhos é depois acompanhado pela família, que mora em Belo Horizonte sem se desligar do interior. Há um elemento deflagrador deste desejo de retorno. O romance abre e fecha com esta morte do pai do narrador, descrita com uma delicadeza muito grande. Ao perder o pai, Carlinhos quer se fazer herdeiro dele. Compra as partes da fazenda das irmãs e começa a costurar os dois espaços.

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Poltrona 27 é um romance so­­bre a reconstrução de um tempo perdido sem abrir mão do hoje do narrador, criando uma experiência dupla de tempo e espaço. A fazenda é revitalizada – o cultivo de pasto novo para o gado, a recuperação de uma mina d’água há muito desaparecida, o plantio de várias espécies, mesmo do exótico eucalipto, tudo aponta para este desejo de não deixar a memória morrer.

Mas o narrador quer herdar essa latitude em toda a sua complexidade. Assim, nas viagens, ele conversa com as pessoas, recupera e transmite as suas histórias. É como um igual que se interessa pelos dramas dessa gente. Na maior parte das vezes, as histórias contadas pelos passageiros e por conhecidos envolvem vidas trágicas, marcadas pela luta da sobrevivência – esses personagens são gente pobre, sem carro, que usa ônibus, sempre indo e voltando para trabalhar, visitar quem partiu ou fazer tratamentos de saúde. Assim, é com uma população em trânsito ou com pessoas que se fixaram ou querem se fixar no interior (alguns mudam de lugar conforme a oferta de trabalho) que o narrador convive no ônibus e nas suas estadas em Santa Marta. Ele é fiel a todos, e vai acompanhando os dramas, sofrendo as perdas de estranhos ou de velhos conhecidos seus e de seus pais.

Este movimento de retorno também se faz no tempo. Seja re­­cordando um episódio do passado de Santa Marta, contado pelo pai, seja ouvindo as histórias da mãe que o acompanha em algumas viagens ao centro da terra natal, ou de uma tia distante, que revela a origem portuguesa de sua família, o narrador está entregue ao trabalho de alma que é herdar o que ficou retido na distância.

Dono de um idioma claro e humano, numa mescla de narração e das falas das pessoas simples de ontem e de hoje, em mais um momento de comunhão, agora pela linguagem, Carlos Herculano Lopes escreveu um livro luminoso que não cria uma oposição entre interior e capital, entre passado e presente, mostrando que somos a confluência de dois mundos.

Serviço

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Poltrona 27, de Carlos Herculano Lopes. Record, 176 págs., R$ 33,90.