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O escritor é um ser humano (sim, sei muito bem, nem todos o são), como eu dizia, um ser humano que sofre o fascínio pelas palavras. Há quem se deslumbre com carros, comidas, com exemplares do outro sexo, ou do mesmo, há quem não consiga ficar indiferente a notícias, etc. O escritor gasta a vida amealhando palavras estropiadas.

Já houve tempo em que ele preferia as grandes palavras, aquelas senhoras sisudas que apareciam nos textos sempre com roupas formais, palavras que farfalhavam. Hoje, as palavras, como tudo o mais, decaíram, num sinal de empobrecimento geral da espécie, e o escritor retira do cotidiano, muitas vezes da sarjeta, as matérias desprezadas, que passaram por todos, os tocos de vocábulos descartados.

Ele se abaixa e colhe no asfalto, toda manchada das nódoas da vida, a gíria que um grupo de viciados usa. Nem mesmo a limpa, guardando em seu bolso esse lixo linguístico, que talvez um dia sirva para alguma coisa. No futuro, vai colocar a palavra em circulação escrita, fazendo um personagem usá-la, ou incorporando-a a um poema qualquer.

O escritor contemporâneo é antes de tudo um salvador de palavras em estado de rua. Faz um trabalho de inclusão desses termos no grande cartório de registro civil – o dicionário. Mas antes de chegar lá, elas passam por um período de quarentena em textos literários, são coladas a pessoas que se alegram e sofrem, cantam e xingam.

Quando você vir um escritor se agachando na rua, furando os sacos plásticos onde se descarta o lixo, conversando com mendigos ou com a gente do tráfico, saiba que ele está em pesquisa de campo, coletando as palavras que se deixaram corromper pela vida urgente das grandes urbes.

Depois de recolher seu tesouro em guardanapos de papel, no verso do extrato da conta bancária (sempre negativa) ou mesmo na mão, fixando-o com caneta de tinta vermelha ou azul, misteriosamente ele nunca usa tinta preta para escrever na própria pele, depois de fazer o registro escrito, mesmo que provisório, o escritor corre para o tugúrio onde trabalha e acaricia este ser retirado das ruas, transcrevendo-o numa das muitas cadernetas que o acompanham vida a fora, desenhando-o no quadro branco pendurado na parede, e novamente ali ele não usa a tinta preta, apenas a vermelha ou a azul, eventualmente a verde – ele prefere a tinta verde quando se vale do advérbio eventualmente, pela aliteração obtida com a letra v (sim, meus caros, o escritor é esse bicho que conhece o êxtase com o cruzamento de palavras que se completam ou se repelem, numa demonstração de afinidades sonoras ou de dissonâncias).

Dessa forma, vai aumentando a coleção de novos termos que, misturados aos demais, já com status literário, servirão para que ele cometa um de seus textos – meu Deus, mais um de seus textos! Eis a vida (a alegria máxima) do escritor. Escrever com algumas palavras recolhidas na rua, constrangendo os leitores mais educados, aqueles que pertencem a boas famílias, estudaram nos colégios mais rigorosos, leram apenas os clássicos, onde palavrões e palavrecas não entram. O escritor contemporâneo sente um prazerzinho maldoso de esfregar nas fuças desse leitor meia dúzia de termos impuros, ainda cheirando aos esgotos de onde vieram.

Foi depois de fazer a sua ronda urbana (a desculpa era um cafezinho que ele toda tarde toma na companhia de amigos), palmilhando cada canto malcheiroso do Centro, que o escritor de literatura juvenil voltou com um lote de palavras. Guardou-as numa caixa de fósforo vazia. Trancado em sua sala, numa repartição pública, ele retirou as palavras, dispondo-as sobre a mesa de trabalho, sentindo o cheiro forte tomar conta de tudo. Poderia abrir as janelas, mas sabia que estava lidando com um tipo proibido de palavra. Como se não bastasse gastar o tempo de expediente nisso, um tempo em que devia estar cuidando de coisas úteis para a população em geral, sem controlar seus impulsos, ele ainda escolhe uma palavra tão odiosa para salvar.

Sobre sua mesa estão vários exemplares da palavra bituca. Nunca tinha usado este termo antes, porque escreve para jovens, e ele próprio jamais fumou. Tinha ouvido o vocábulo várias vezes, mas não se interessara por ele. Como a proibição de fumar em lugares fechados havia obrigado toda a população viciada em tabaco a ganhar a rua, fazendo com que as calçadas se infestassem de bitucas, era obrigação dele recolher esta palavra, mesmo não tendo o que escrever com ela.

Lembrou-se então que, na adolescência, colecionara marcas de cigarro. Abria cuidadosamente as carteiras e as colocava numa pasta com plásticos transparentes, para poder exibir sua coleção. Gostava de viajar a Foz do Iguaçu, onde encontrava, pelas ruas, espécimes internacionais.

A vida deu tantas voltas e hoje este ex-jovem escreve para meninos e meninas que têm a idade com a qual ele começara a sua coleção de maços vazios. Mas ainda colecionava, colecionava palavras. E ali estavam as muitas variações da palavra bituca – umas com batom, outras amassadas, algumas que eram quase meio cigarros (vinham de pessoas que tentavam fumar menos, por isso abandonavam a bituca rapidamente). Procurou na gaveta da escrivaninha um cinzeiro e as jogou lá.

Se o flagrassem ali, em seu lugar de trabalho, com aquelas palavras, os dedos cheirando à nicotina, não acreditariam que não estava fumando onde era proibido, pois ninguém nunca acredita que um escritor ame apenas a alma das palavras, sem jamais tentar se aproveitar delas.

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