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Tem coisa mais odiosa do que gente andando lentamente no calçadão? Não, não tem mesmo. Então, eu aperto o passo, esbarro meu ombro nas costas do idiota, ele meio que se desequilibra, passo por ele em alta velocidade, pois estou com pressa, muita pressa. A pessoa nem me xinga, porque sabe, porra!, que está atrapalhando. Olho para trás e vejo que até começou a andar mais rapidamente. Então eu ajudo o cara a entender que ele mora na cidade, que não tem essa de se distrair pelo centro, não, é vida dura mesmo, mermão. Cada um correndo atrás do preju.

No começo, era só implicância. O otário muito folgado na rua, passeando no meio de uma multidão que chega para o trabalho que vai para casa que corre para algum compromisso ou simplesmente tenta chegar o mais rápido possível no restaurante para engolir a comida vendo o programa de esporte na televisão com a imagem ruim, enfim todo mundo meio atrasado para alguma coisa e daí os engraçadinhos, alguns até de terno e gravata, quase param na calçada onde não cabe mais gente, se achando o dono do pedaço. Provocação. Só pode ser isso. O que ele está pensando? Se fosse ao menos no final de semana, ou à noite, quando todos já estão em casa, ou no mínimo no banco duro do ônibus, tentando dormir no trajeto de volta, ou vendo um programa de televisão qualquer, desses mais ordinários, não porque goste, mas só para que um dia de trabalho não se emende em outro apenas com o sono no meio, para que haja um intervalo, esse negócio que muitos chamam de lazer, bem, se o camarada estiver andando distraído na rua à noite, mesmo com tantos ladrões, eu entenderia e talvez até pudesse me simpatizar com ele, ei, você, está vendo aquele prédio ali, eu já trabalhei no décimo andar, faz tempo, tenho até saudade do monte de serviço que me davam para fazer, sim, eu poderia puxar conversa com o camarada e ficaria amigo dele, porque à noite a gente tem direito de ser vagaroso, a vida já está ganha, a correria foi suspensa, os carros não atordoam a gente com a poluição dos escapamentos, o sol não queima mais a moleira do pedestre, então está tudo bem o carinha se sentir, como é que se diz?, relax na rua. Mas nestas horas mais desertas não vejo ninguém assim não, os poucos que saem de casa estão sempre agitados, fogem de algo, do ladrão que talvez esteja sob aquela marquise, e cruzam de um lado para outro da pista, correndo, mesmo quando não vem carro, só de medo de quem está chegando em surdina. Tá certo, é a regra.

Então, se, nas horas em que tenho de fazer algum serviço de banco, um monte de papel na pasta, o dinheiro separado para cada boleto, sentindo a calçada quente queimar meus pés, preciso com urgência colocar uma meia-sola neste sapato, eu encontro um folgado qualquer no meio dos que correm, ah, não tenho dó mesmo, empurro assim que ultrapasso, fecho o cara e se posso ainda solto uma cotovelada, sem deixar de me virar e fazer uma feição feroz, de quem não perdoa essas liberdades de lerdeza, isso é uma capital, ó meu. Quer tranqüilidade? Volta pra roça, vai pescar com a sua cambada de aposentado. Se liga.

Odeio mesmo é quando chego a um sinaleiro fechado e tenho que cortar minha corrida. Ficamos todos ali esperando nas bordas lotadas do calçadão, eu então não me aguento, fico me mexendo, os pés querem se mover, mas tem essa porcaria de rua congestionada de carros, pô, por que o prefeito não faz uma passagem subterrânea? Se eu chegar atrasado ao banco e ele estiver fechado, quem vai ser o culpado? O camaradinha aqui, de quem ninguém tem dó. A tarde toda na rua, meu chapa, e agora vem com essa de que o trânsito isso e aquilo, que não pagou as contas porque não sei lá o quê. Vontade louca de voar.

Quando enfim posso cruzar a rua, se tem algum carro parado porque o sinaleiro da outra quadra fechou, congestionando tudo, eu faço questão de esbarrar no retrovisor, dou uma encostada com a coxa na porta, para afundar a lataria, e ninguém reclama, porque sabem que tenho pressa. Todo mundo tem pressa.

Não sei direito quando surgiu a ideia de andar buzinando. Andar é a maneira de dizer. Eu corro pelo calçadão, vou ultrapassando as pessoas e buzino, buzino com força, e se não abrem passagem, grito sai da frente, otário, e acelero. Depois de fazer todo o serviço, sempre me sobra algum tempo, que eu poderia usar descansando num dos bancos, mas nada disso, corro pro outro extremo do Centro, agora com a pasta leve, sem nenhum serviço para fazer, e continuo buzinando e xingando as pessoas, faço ultrapassagens perigosas, jogo para fora da pista os, como é que se diz?, transeuntes, e chego sempre antes de todos ao meu destino.

Bom, confesso que estou um pouco preocupado com esta baboseira de lei de trânsito. Estão cassando as carteiras dos motoristas imprudentes, que são multados por desrespeitar os limites de velocidade. Isso é uma ofensa, pois onde já viu uma cidade em que todos tivessem que andar devagar? É um verdadeiro absurdo.

Assim que desço do ônibus lá na vila, depois de ficar em pé, circulando de um lado para o outro do corredor, eu saio correndo pela rua de terra, jogando pedra para todos os lados, e chego rapidinho. Antes de entrar em casa, passo pela caixa do correio e vejo se chegou multa para mim. Graças ao meu São Cristóvão, até hoje, tenho conseguido enganar os radares e as autoridades de trânsito.

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