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Miguel Sanches Neto

Pequenas alegrias

Em qualquer feira de livro que você for, das sofisticadas às provincianas, entre os títulos mais vendidos sempre haverá volumes de piadas. Este tipo de obra é a versão extrema da leitura como passatempo. A leitura aqui não está relacionada à fome de saber. Lê-se para rir, para esquecer um pouco as preocupações da vida – ou seja, para desopilar.

Nossa tendência é ter uma visão negativa desse material impresso, geralmente mal-impresso, achando que ele não faz parte do universo letrado, que a cultura nos distancia de tudo que seja assim tão baixo. Mas a grande literatura sempre incorporou o humor e fez dele uma ponte para o leitor. O livro-marco da ficção moderna no Ocidente, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha, de Cervantes, tinha no humor o seu principal recurso, a começar pela origem daquele texto, que não pertenceria a Cervantes, mas a um autor árabe chamado Cide Hamete Benengeli – um nome a princípio sério, mas que, traduzido, revela seu caráter humorístico: o autor seria Dom Berinjela. Assim, desde o início, Cervantes se põe a rir com o leitor. Esses manuscritos árabes pertencem a um narrador farsesco, que nos diverte até hoje, quando todo aquele universo já desapareceu.

Mesmo um Machado de Assis, que atormenta as gerações escolares com seu texto denso, tem grandes momentos de humor em seus principais livros. E é pelo humor de O alienista, por exemplo, que deveria se dar a iniciação à leitura deste autor clássico. Porque rir diante de um texto é criar uma proximidade entre e autor e leitor, sem a qual o livro perde seu efeito transformador. Há outras formas de promover esta adesão ao livro, mas nenhuma tão imediata e eficaz quanto o humor.

A erudição moderna tende a negar a função humorística do texto, preferindo uma visão mais densa da existência. Mas há setores da cultura que se valem do humor como principal instrumento de comunicação, tratando de assuntos que a etiqueta renega. Nas mãos de um criador, temas e linguagens humorísticos e/ou escatológicos são tão legítimos quanto quaisquer outros. E com a vantagem de cooptar imediatamente o leitor.

Foi o que aconteceu comigo em uma estada no Nordeste.

Durante minhas viagens, sempre visito as igrejas. Passando alguns dias em João Pessoa, gastei a manhã ensolarada de sábado na Igreja de São Francisco. Muito diferente dos outros patrimônios sacros da arquitetura barroca, esta construção, com influência toscana, tem, em um de seus altares, anjos com feição indígena, para mostrar àquele povo que eles também faziam parte da corte católica. Há ainda uma capela, dentro da igreja, para os negros. O caráter pedagógico de todo o conjunto de São Francisco é bem visível: trata-se de um monumento da catequização. Depois da visita guiada, acabei em uma loja de produtos locais, no anexo da igreja, pois agora os freqüentadores não são mais os fiéis, e sim os turistas.

Ainda estava tomado pela grandiosidade mística daquela edificação, pela força simbólica dos altares em ouro e das pinturas nos tetos, quando encontro uma banca com os livretos de cordel do poeta paraibano João Costa Leite. Lendo os títulos, já comecei a me divertir.

Não gosto de artesanato; só raramente compro alguma coisa produzida pelos artesões, apenas quando vejo que há um sopro qualquer de genialidade. Mas pelos títulos intuí que ali estava um poeta popular autêntico, e acabei saindo com alguns de seus cordéis, sem ter lido sequer um de seus versos.

A literatura de cordel nos liga aos momentos iniciais de nossa cultura, ao universo de cavalaria que aparece em Cervantes, e faz parte do imaginário nacional. É uma volta à natureza primitiva, que não tem medo do ridículo, que não se põe em poses civilizadas. Os livrinhos são magros, a leitura é rápida, os versos simples e diretos.

O volume que mais me chamou a atenção se chama O Peido Que a Nega Deu. Li as 15 estrofes no quarto do hotel, admirando a coragem do poeta, que subverte as regras da urbanidade, usando em letra impressa este linguajar rude. O livro começa com uma defesa da ventosidade.

Pra tudo precisa sortePra soltar peido tambémQuem tem sorte vive alegreSolta peido muito bemPorém o que não tem sorteVindo o Sul e do NorteSolta um peido a m. vem

Peido não é imoralO peido a ninguém faz medoPeido serve de alívioRuim é não soltar peidoPois soltar peido é comumE quem nunca soltou umPode levantar o dedo

A repetição desta palavra socialmente silenciada faz com que nos acostumemos a vê-la escrita. Como pertence à intimidade escatológica, reforçar a sua presença é uma estratégia textual das mais sofisticadas, pois dá naturalidade ao termo.

Pelo riso, João Costa Leite cria um momento de inocência, devolvendo o leitor adulto a um estado de liberdade infantil, quando nos era permitido um contato mais rude e mais verdadeiro com a realidade. Este tipo de literatura, é claro, fica mais no nível do humor, não promovendo uma transcendência semântica. Material e literariamente fungível, está muito aquém da literatura, mas aponta para uma idéia de leitura como conquista de pequenas alegrias.

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