O escritor carioca Marcelo Moutinho reafirma a qualidade dos contos brasileiros| Foto: Divulgação

Mesmo sem mercado, o conto continua encantando as novas gerações de escritores, tanto pela brevidade, marca de quem está entregue às urgências de viver, quanto pela proximidade com a poesia. Ele dá a impressão de ser mais literatura do que o romance, esse monstro flácido, pois permite um trabalho de linguagem muito mais eficiente, mais minucioso.

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Tal contiguidade entre conto e poesia pode ser encontrada no terceiro livro de Marcelo Moutinho – A Palavra Ausente (Rocco, 2011), em que o escritor carioca cuida de cada frase de seus textos breves. O volume já abre com duas citações poéticas – uma delas vinda da letra de uma música –, antecipando o seu território criativo.

Centro deste campo, a história final trata da visita à cidade de Manaus da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andersen, narrada por uma moça simples que nunca havia lido um livro. Depois de momentos de intensidade com a autora, a jovem recebe como presente uma antologia de seus versos e faz a primeira leitura literária de sua vida. Este é um conto com grande significação na estrutura da coletânea por aproximar a poesia hermética de uma neoleitora, que encontra uma imagem da própria condição mesmo em textos com tantas palavras inalcançáveis. Há uma identificação plena entre seres culturalmente distantes e a poesia passa a ser uma música comum: "Mas depois eu li o livro de novo, e de novo, e vi que, apesar de a gente ser tão diferente e de eu não ter encostado nem ao menos meu dedo na água salgada, pareço muito com Dona Sophia" (p.118). Geralmente tida como inadequada para gostos mais populares, a alta literatura se mostra aqui sedutora também para esta faixa de (não) leitores.

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Parece ser esta sobreposição de universos a marca dos contos de Moutinho. Seus temas são, no geral, bem cariocas (futebol, praia, samba, habitantes do morro, motoristas de ônibus...), enfim, a experiência urbana de quem olha o mundo a partir do Rio de Janeiro, sem recair nas tentações naturalistas de linguagem ou de enredo, numa opção pelo lirismo desencantado e pela ambiguidade sutil.

Por conta disso, as histórias surpreendem sem serem estapafúrdias. Dois homens entram no banheiro, e um começa a lavar o outro ("Água"). Cria-se um clima de encontro sexual, mas, aos poucos, sem que a cena seja totalmente revelada, descobrimos uma dolorosa rotina familiar. Esta indução do leitor a um erro de compreensão, levando-o a perceber isso na sequência, é um recurso refinado, do qual Moutinho se vale para desconstruir os chavões narrativos.

Não há um conto que não nos comova, e mesmo temas festivos como o futebol e o samba aparecem dentro de uma visada trágica da condição humana. Em "Jogo-contra", as partidas de futebol disputadas em campinhos pelos meninos não funcionam como celebração do jogo, da vitória ou da amizade entre os jogadores, mas da união de um pai e de um filho, num momento em que este percebe que o outro começa a desaparecer. As relações familiares, principal pano de fundo dos contos, nunca tendem para o dramalhão dado o projeto do autor de não dizer tudo, de criar espaços de ausência no interior da linguagem. Já quanto ao universo do samba, e contrariando o título, o relato "Folia" quer antes mostrar a tristeza de um marido que ocupa os afazeres da esposa ausente. Ele participa da rotina de uma escola de samba como serviçal, um serviçal principalmente da memória pessoal.

Assim, seus personagens, sejam eles filho, namorado gay, sobrinho, marido, estão passando por experiências de confronto com a fragilidade da vida. Com esta percepção profunda, tratando de questões comuns do cotidiano urbano e com um domínio poético da estrutura narrativa, Marcelo Moutinho reafirma a qualidade do conto brasileiro.

Serviço

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A Palavra Ausente, de Marcelo Moutinho. Rocco, 120 págs. Contos.