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Ricardo Ramos com o pai, Graciliano: retrato fragmentado, mas completo | Reprodução
Ricardo Ramos com o pai, Graciliano: retrato fragmentado, mas completo| Foto: Reprodução

Em um escritor da estatura de Graciliano Ramos (1892-1953), e com sua aversão ao confessional e sua militância comunista, o mito desde o início se sobrepôs ao homem. Como a mitificação cria a caricatura, é preciso se aproximar da vida íntima do autor para corrigir as distorções. E não há melhor maneira de fazer isso do que acompanhar os relatos de quem conviveu intensamente com ele. A segunda edição de Graciliano: Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos (1929-1992), se propõe, como o próprio título anuncia, a devolver os vários ângulos da biografia do romancista.

E quem faz este retrato não é qualquer um, mas um filho de Graciliano. Também não é qualquer filho, mas aquele que seguiu a vocação do pai. E não é em qualquer momento da sua vida que ele escreve esta obra, mas quando, na idade em que o próprio Graciliano morreu, e padecendo da mesma doença, ele resolve tentar compreendê-lo, juntando os cacos vários de um vitral. O resultado é um volume de memórias de grande valor humano e literário, construído com os instrumentos do ficcionista e de dentro de uma experiência humana dolorosa. Neste momento, o da escrita, as fotos e os relatos sobre Graciliano já haviam criado uma figura postiça, impedindo o filho de vê-lo como um vivente. Restam-lhe então os instantes de inconsciência: "Hoje, só consigo lembrar meu pai, como homem, quando durmo. Para mim ele se tornou matéria de sonho" (p.203). O livro busca fixar estas imagens oníricas, tendo sido escrito principalmente para uso próprio. Daí a sua força.

A fragmentação do texto, assim, assume um sentido maior, a forma se confundindo com o conteúdo. Filho do segundo casamento de Graciliano, e tendo passado a infância longe do pai, que foi preso político da ditadura Vargas, Ricardo não guarda uma memória contínua dele. O nordeste (Palmeira dos Índios e Maceió) não ocupa um lugar de destaque nestas recordações, e aparece filtrado por outros relatos ou por uma memória esmaecida. É que o filho só vai conhecer mesmo o pai já adolescente, quando a família enfim se reúne no Rio de Janeiro.

Todos os irmãos já eram adultos quando eles puderam ter um encontro familiar. "– Hoje almoçamos juntos, Márcio, Júnio, Múcio e eu. Pela primeira vez.", conta Ricardo ao pai, estudando sua reação: "Ele não estava mais ouvindo. Baixou a cabeça e ficou em silêncio" (p.94). O memorialista só podia recordar cenas avulsas desta figura, pois mesmo no período em que estiveram sob o mesmo teto, nos seus tempos de estudante no Rio, o silêncio e a reserva de Graciliano criavam descontinuidades. É com este pouco, valendo-se da memória de amigos e parentes, e de documentos, que ele reconstitui a biografia econômica de Graciliano, uma biografia que, como o seu próprio estilo, foi de ausência, de lacunas, fiel à paisagem árida do sertão.

Sintomaticamente, no Rio, Graciliano se dedicou mais aos textos memorialísticos, abandonando a ficção. Ele se sentia exilado, desenraizado de seu mundo matinal. Tentou escrever um romance que se passasse ali, abortando tudo por não sentir aquele ambiente com a mesma intensidade.

Ricardo Ramos guarda apenas imagens esgarçadas do pai no fim da vida, mas tenta ler o sertanejo nele. O intelectual comunista que colocava a ética acima do partido. O funcionário sobrevivendo de pequenos trabalhos – era revisor, ganhando menos do que os filhos. O homem direto que, apesar de escrever de forma precisa, não idealizava as pessoas e muito menos a linguagem. O escritor indiferente à competição, que só produzia por imperativo interior, tendo destruído a carreira e a vida familiar para não ser obrigado a mudar seu comportamento e suas convicções. Enfim, se o retrato é fragmentado, a pessoa se revela na sua inteireza.

Serviço:Graciliano: Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos. Globo, 272 págs., R$ 37,90. Memórias.

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