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Miguel Sanches Neto

Um novo gênero

O criminalista Von Schirach relata os casos mais chocantes que defendeu | Divulgação
O criminalista Von Schirach relata os casos mais chocantes que defendeu (Foto: Divulgação)
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Em um conjunto de três ensaios (O Que É um Autor?), Michel Foucault localiza a entrada de pessoas comuns no mundo da escrita, dando-lhes uma cidadania cultural. Para ele, existe uma literatura com um "funcionamento em verdade"; isto é, colada à existência de quem escreve. O filósofo estava mais preocupado com os marginalizados que, em situação de perigo diante da lei, se valem da palavra como forma de sobrevivência. É justamente em nome de quem não usou a linguagem, no entanto, mas com o mesmo caráter de verdade, que o criminalista alemão Ferdinand Von Schirach relata, em Crimes, os casos mais chocantes que ele defendeu.Tanto no título do livro quanto no dos textos que o compõem, há uma preferência pelo substantivo, alguns sem nem mesmo o artigo. Esse estilo seco, preciso, sem concessão ao sentimental ou ao adorno, caracteriza todos os relatos do volume. Como não quer fazer pose literária, Von Schirach escreve com uma grande economia de meios, colocando-se dentro das histórias.

Por sua capacidade de argumentar e de compreender as fraquezas humanas, ele é um narrador amoral, num reflexo de sua profissão. O advogado faz o seu trabalho, defendendo os clientes, mesmo quando sabe, ou intui, estar diante de um culpado: "O fato de o advogado acreditar que o seu cliente é inocente não faz a menor diferença. Sua missão é defendê-lo" (p.91). Ele volta a essa idéia em "Verde": "Às vezes, ser advogado de defesa é mais fácil do que ser promotor. Minha tarefa era ser parcial e interceder em fa­­vor do meu cliente" (p.128). Com este senso de missão empresarial, ele constrói uma voz narrativa moderna, interressada mais em compreender o funcionamento da sociedade do que em achar culpados ou dar lições.

Os crimes formariam uma história do mundo contemporâneo nas suas misérias e grandezas. Porque também se cometem atos cruéis por motivações nobres, como em "Fänher", em que um médico suporta os desmandos da mulher, que ele tanto amava e que jurara sempre proteger, até a velhice, quando a mata com machadadas e depois a esquarteja. Ou no caso da moça rica que afoga o irmão reduzido a uma vida vegetativa para não vê-lo sofrer. Ou ainda, no mais assustador dos textos, na história de um jovem que amava tanto a namorada que decide literalmente devorá-la, em "Amor". O conjunto de relatos de Von Schirach retira dos crimes todo o sensacionalismo próprio das notícias, mostrando que não são apenas os monstros morais que os cometem, mas também pessoas pacatas, algumas até bondosas.

A pergunta que fica, após a leitura, é: até que ponto tudo isso é verdade? A epígrafe do livro, tirada de Werner K. Heisenberg, pode ser uma resposta: "A realidade da qual podemos falar nunca é a realidade". Ou seja, todo texto é sempre ficção, porque reconstrução parcial da realidade. Uma outra questão é sobre a falta de ética ao revelar os casos em que ele trabalhou. O narrador afirma ao seu cliente canibal, para fazê-lo confessar as razões de ter atacado a namorada: "Advogados estão sujeitos ao sigilo profissional. Tudo que você me disser permanecerá entre nós" (p.152). Mas ele já tem a má intenção de narrar isso.

Se Crimes são relatos em "funcionamento de verdade", como literatura, sem outra função além da estética, eles não ficam circunscritos a nenhuma código profissional. Traindo ou não a confiança de seus clientes, ou inventando pretensas histórias reais, o fato é que, pela alta qualidade literária de seus relatos, Von Schirach reinventa a narrativa policial, agora construída a partir das experiências de um herói criminalista.

Serviço

Crimes, de Ferdinand Von Schirach. Tradução de Roberto Rodrigues. Record, 176 págs. R$ 29,90.

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