Num misto de fotobiografia, antologia de poemas sobre sua terra natal e coletânea de perfis literários, o volume O Vento do Mar (Contracapa, 2011), de Lêdo Ivo, funciona como uma autobiografia indireta, como autobiografia de uma voz. Nele, o poeta se revela ao lado de inúmeros outros escritores, brasileiros e estrangeiros, recorda lugares frequentados e opiniões sobre sua obra, situa as suas origens em um conjunto de poemas e principalmente dá depoimentos sobre figuras literárias com quem conviveu desde sua chegada, ainda menino, à cidade do Rio de Janeiro.
Falando de Afonso Arinos de Melo Franco, ele diz que este "desejava escrever um livro sobre as grandes amizades literárias" (p.130). É exatamente este projeto que Lêdo Ivo realiza por meio da recolha de textos sobre figuras que o marcaram: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Clarice Lispector etc. Felizmente, o poeta contraria a crença de Cornélio Pena, para quem seria "um erro, um erro grotesco, essa curiosidade de conhecer o autor em sua vida interior, a não ser pelos livros" (p. 66). Fazendo críticas contundentes ao excesso de teorização, essa praga que transformou os estudos literários em algo afastado do coração selvagem da vida, Lêdo Ivo compõe deliciosos retratos de escritores que tiveram um impacto sobre a sua formação. Ele confunde, para o nosso bem, memória e estudo literário, focando sua percepção da obra de alguns autores no ser que eles foram. Assim, esses ensaios memorialísticos são documentos humanos e também culturais.
Tendo abandonado a possibilidade de ser crítico militante ainda jovem, assumindo a sua vocação de criador, o poeta pôde se ver livre dos formatos analíticos, deixando que a convivência com os autores lhe desse chaves de leitura. Dessa forma, ao revelar que Graciliano Ramos tinha preconceitos de raça, ele cria uma relação direta entre pureza gramatical (obsessão do autor de Vidas Secas) e pureza racial. O movimento analítico, longe do "eruditismo predatório", se faz da vida para a obra, conquistando o leitor por revelações sobre a intimidade desses autores, mas postas a serviço de uma compreensão de legados literários.
Acostumados a tomar Clarice Lispector como um consenso editorial, ficamos sabendo de sua solidão ao longo da vida, de sua dificuldade de arrumar editor, e também de suas crises. Tudo isso está resumido em uma resposta doída a um comentário jocoso de um de seus editores no jornal, que a aconselha a fazer sexo para melhorar o humor. E Clarice diz: "Não posso transar com ninguém. Tenho o corpo todo queimado" (p. 125). Para além do meramente anedótico, tais casos servem para devolver a escritores que hoje são entidades abstratas uma dimensão humana.
De todas as grandes figuras com quem cruzou, a de maior importância em sua vida foi Manuel Bandeira, a quem Lêdo Ivo dedica um conjunto de textos, recordando da história comovente do poeta que não é aceito em nenhum hotel em Teresópolis, por ser tuberculoso, tendo de dormir na prefeitura, ao seu impulso, quando já tinha 80 anos, de passar uma noite com uma vedete negra, o que lhe foi proibido por seu médico. O desejo por esta mulher era a consolidação de uma relação amorosa com o Brasil, pátria de seres humildes que ele habitou de uma maneira erótica e comovida: "ninguém ensina melhor a ver do que Manuel Bandeira. O que viu beco, enterro, umbigo de mulher nenhum outro poeta o terá visto" (p.208). Esse olhar horizontal se desenvolveu pela posição de doente profissional, que lia na cama, que passara seus dias de mocidade num sanatório, "estirado numa chaise longue" (p.218).
Irritado com os "monstros gerados pela Teoria Literária" (p.217), Lêdo Ivo nos coloca em sintonia com a vida/obra desses escritores, e também com a dele.
Serviço:O Vento do Mar, de Lêdo Ivo. Organização de Monique Cordeiro Figueiredo Mendes. Contracapa, 298 págs. Perfis biográficos.
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