Alguns atribuem ao compositor Sinhô um dos pioneiros do samba uma frase engenhosa que me veio à memória durante o circo eleitoral a que fomos submetidos.
Ocorre que Heitor dos Prazeres o acusara de plagiar o samba "Gosto Que Me Enrosco". Diante disso, Sinhô, antecipando todos os malandros que viriam depois dele, teria dito: "Samba é como passarinho que passa voando. É de quem pegar primeiro".
Para Sinhô um passarinho voando por aí é de qualquer um. Quem pegou, leva. Faz sentido, considerando-se o ambiente em que nasceu o samba. Mas é pilhagem de direitos autorais.
Ocorre que no país dos Bruzundangas, não são poucos os que se comportam desta forma quando se trata de dinheiro público, expressão que parece sugerir que, sendo público, é de todos, ou seja, de ninguém. Feito o pássaro que cruza os ares. Já tivemos um presidente que, diante da acusação de caixa dois feito com dinheiro público declarou, com uma lavada cara de santidade, ser aquilo coisa que "todo mundo faz".
Eis aí. Se todos fazem, é normal que se faça.
Nesse outubro de 2014 o tema da corrupção dominou a campanha eleitoral, motivo pelo qual não resisto a ele, embora com a paciência já esgotada. As acusações de corrupção foram moeda corrente nos chamados debates que nada debateram, resumindo-se a uma saraivada de xingamentos e golpes baixos nos quais estiveram sempre associadas ao dinheiro público. Disso a população, com ou sem razão, deduz que todo político é corrupto.
Talvez seja justo pensar assim, mas há uma falha nessa equação.
Se há corrupto, existe corruptor, o sujeito oculto do quebra-cabeça. É difícil indicar quem ele seja e costuma ser perigoso fazê-lo, pois se trata de gente com efetivo poder de fogo. São banqueiros, financistas, empreiteiros, empresários, grandes proprietários, gente cheia de grana etc. Mexeu com eles, você acaba condenado. Vimos isso acontecer recentemente.
No entanto, sendo óbvio, é preciso colocar na roda os corruptores.
Ainda assim a equação não está completa.
Quando nos concentramos no dinheiro roubado deixamos de apontar não só o corruptor, mas algo mais profundo e que instaura a corrupção.
O efeito mais devastador da corrupção não é o roubo do dinheiro público. O que se corrompe nesse ato são as bases sobre as quais se apoia a vida social, no caso, a propriedade pública. E isso não é uma lei, é antes uma convicção constitutiva da sociedade. Repito o que digo há muito, por ser verdade e por ser óbvio: não são as leis que fazem as sociedades, são as sociedades que fazem as leis. Sem convicções não há sociedade possível.
Eis o crime cometido. Não um mero e eufemístico malfeito.
O que Sinhô fraudava, ingenuamente por certo, é uma convicção moderna: a criação é propriedade do seu criador. Quando se garfa dinheiro público, o que se corrompe é a consciência de que o bem de todos tem dono. Tal como o ar, a água, a liberdade, a dignidade de cada um.
Um país precisa saber quais são suas convicções fundamentais e zelar por elas. Sem isso, o passarinho é de quem pegar primeiro, o que nenhuma arquitetura jurídica poderá consertar.
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